sexta-feira, 27 de abril de 2012

PAULO E PAULO

Duas boas notícias, divulgadas nos últimos meses, quebraram meu cotidiano e me coagiram a testemunhar a beleza da poesia que, de vez em quando, parece entrar na rotina das burocracias e me obriga a reverenciar algumas atitudes. As duas boas – na verdade, ousaria imputar-lhes os adjetivos excelentes, extraordinárias e fantásticas – notícias são relacionadas ao título de Patrono do Teatro Brasileiro, concedido ao ator Paulo Autran, e ao de Patrono da Educação Brasileira, conferido ao educador Paulo Freire.


Paulo Autran e Paulo Freire são praticamente contemporâneos, entretanto desconheço se tiveram afinidades, se um chegou a acompanhar e a entender profundamente o trabalho do outro, se possuíam interesses estranhos aos seus campos de atuação, se compartilhavam ideologias e visões políticas... Ambos ensaiaram vitoriosas tentativas de comunicação universal. A única maneira de se manter a comunicação universal é, logicamente, valendo-se de linguagem universal. Autran e Freire então recorreram àquela mais nobre linguagem: a Arte.


Autran ensaiou seus passos pelos palcos mundo afora, atuou em algumas novelas e, com o tempo, aperfeiçoou a qualidade cênica, apresentando e reencenando peças que saíam da pena de escritores consagrados e de dramaturgos que davam os primeiros respiros. Freire esqueceu o diploma de bacharel em direito em alguma de suas gavetas ou estantes, abriu mão do dinheiro que indiscutivelmente ganharia nas insolúveis e ineficientes controvérsias jurídicas para se dedicar a atividade menos rentável, menos reconhecida, mais encrencada: educação.


Paulo e Paulo resgataram as melhores qualidades da nação brasileira e, cortando daqui, elaborando dali, produzindo constantemente e refletindo sem parar, deram um toque de graça que os levou aos prêmios mundiais. Se juntássemos tanto os prêmios de reconhecimento de um quanto os títulos de enaltecimento de outro, precisaríamos de dezenas de colunas apenas para enumerá-los sem nada comentar, sem contextualizar as façanhas e sem discutir os graus de relevância.


Faculdades de letras não produzem poetas, as de artes não lançam artistas e as de pedagogia não talham educadores. Poetas, artistas e educadores nascem naturalmente, diria Rubem Alves, aproximando-se da perspectiva platônica de inerência do conhecimento ao espírito do homem. Talvez acrescentasse ao pensamento de Rubem Alves a convicção aristotélica de que qualquer pessoa pode freqüentar aulas de letras, de artes ou de pedagogia, entretanto apenas quem se compromete realmente se transforma em literato, artista (em sentido amplo) ou educador (função bem diferente da de professor).


Paulo Autran e Paulo Freire são assim: nasceram homens comuns e distinguiram-se dos demais não por se “transformarem” respectivamente em ator e educador, mas por “serem” ator e educador. Quem tem a curiosidade de ler – e quem tem curiosidade de ler? Os professores? – qualquer obra de Paulo Freire descobre as palavras sintaticamente elaboradas na construção metafórica eficiente, encantadora, persuasiva. Manifesta-se a poesia pelo poder de encantar e persuadir.


Quem tiver a oportunidade – e quem vai ter oportunidade? Os atores de teatro, de cinema e de televisão? – de assistir a algum vídeo de Paulo Autran descobrirá seu brilhantismo que se sobressai não apenas nos palcos e nas câmeras, mas se espalha pela voz na leitura de crônicas e de poesias. Basta ouvi-lo declamando “A mulher madura”, de Affonso Romano de Sant’Anna, as elucubrações de Fernando Pessoa ou a música de Carlos Drummond de Andrade para, sem muito esforço e sem necessidade de erudição, perder-se em pensamentos provocados por sua voz poética. Poesia que encanta e persuade.


Geralmente não me considero admirador do Mario Quintana poeta, mas reconheço inquestionavelmente a maturidade e a suavidade do cronista Mario Quintana que afirmou que o poeta vale por seu poder de feitiço. Se realmente estiver correto, Paulo Autran e Paulo Freire lançaram encantamentos e agora usufruem dos resultados dos feitiços sobre milhões de admiradores (brasileiros ou não). Encantamentos e feitiços que, se eventualmente esmaecerem na memória coletiva, ficarão grudados nos patronatos com os quais foram justamente contemplados.


*Publicado originalmente na coluna Ficções, caderno Tem!, do Oeste Notícias (Presidente Prudente – SP) de 27 de abril de 2012.

sexta-feira, 20 de abril de 2012

HIPÓTESE

O melhor lugar para desaprender – ou pelo menos questionar algum conceito – é na faculdade e, dependendo da faculdade, você sairá graduado em crítica ou experto em cretinice. Chegava ao meio de um infindável livro quando as explicações de duas estudantes de agronomia me interromperam. Discorriam sobre os procedimentos de plantações. Uma delas, a mais falante, incentivava a aprendizagem de regra de três composta com a finalidade de identificar a quantidade de graus Celsius necessária à germinação da semente. Se no frio, algumas culturas não prosperariam; se no calor, condenadas ao fracasso.

A produção de conhecimento desenvolvia-se satisfatoriamente quando, mais uma vez, a voz elevou-se: a segunda estudante perguntava o significado da palavra “hipotético” disposta no enunciado da questão. A primeira estudante impostou a voz e declarou não se lembrar claramente da resposta do professor, entretanto sabia que hipotético era algo “surreal”, “do outro mundo”, “tipo assim uma coisa sobrenatural”. Segurei-me ao máximo, ajeitei-me na cadeira, respirei fundo, levantei rapidamente, entrei no banheiro e fechei a porta antes de estourar numa risada. Não entendo nada de língua, lingüística, linguagem, significante, significado ou comunicação, contudo tinha convicção: hipótese não era algo “surreal”, nem “do outro mundo”, muito menos algo “tipo assim uma coisa sobrenatural”.

Recomposto, voltei à cadeira, peguei o livro, pus meus olhos ao trabalho árduo de continuar sua monótona leitura, anotei alguns dados numas folhas de papel que uso como rascunho, enumerei displicentemente atividades do dia posterior (banco, supermercado, casa lotérica...). Por mais que me esforçasse o “surreal”, algo “do outro mundo” e “tipo assim uma coisa sobrenatural” voltavam-me com grande estrondo e, mais uma vez, o riso explodiu. Seriamente descobrindo os resultados decorrentes das fórmulas aplicadas, as meninas desconheciam o motivo de meus ataques de bom humor.

Levantei-me novamente, tranquei-me no banheiro, lavei as faces e tomei a decisão: buscaria o significado de “hipótese” no dicionário. A bibliotecária de óculos pesados e voz baixa – modulada pelo silêncio constante do ambiente, geralmente cheio de freqüentadores às vésperas de prova ou de trabalhos coletivos – perguntou-me que espécie de dicionário gostaria de usar e, quando disse que me entregasse o mais completo de língua portuguesa, dispôs-me antiga edição do Aurélio, publicada em meados dos anos 80 em papel-bíblia.

Uma das qualidades das bibliotecas de algumas faculdades? A convicção de que seus alunos e, principalmente, seus professores, jamais recorrerão aos seus serviços. Prova disso é que o dicionário Aurélio, único exemplar disponível, estava inteiramente empoeirado, páginas quase coladas e casas de aranha nas duas extremidades. Alguém ressaltará que alunos universitários, pela suposta carga de conhecimento adquirido, nunca precisarão pesquisar em um singelo dicionário de língua portuguesa, mas, como sou burro, aceito minhas limitações e me ponho a procurar informações com quem aparentemente sabe melhor do que eu.

Entre outras definições literárias, filosóficas e científicas, os sinônimos da palavra procurada definiam “hipótese” como caso, eventualidade, suposição ou acontecimento incerto. Consequentemente imaginei que “hipotético” não é algo “surreal” (algo fora do comum), nem “do outro mundo”, muito menos algo “tipo assim uma coisa sobrenatural”, mas um caso eventual ou suposto. Se Bertrand entra num bom emprego de salário milionário, existe a hipótese de que ele adquira carro mais confortável, mude de casa, compre mais roupas, viaje com a família nas férias para lugares encantadores... Em outras palavras, Bertrand – eventual ou supostamente – poderá comprar carro ou roupas, mudar de casa ou viajar com a família, mas não necessária e obrigatoriamente colocará em prática tais atividades, pois são “hipóteses” daquilo que poderá fazer.

Essa experiência ensinou-me algo valioso: mais valem noites dedicadas aos bares, boates, cartas, sinucas e baladas do que gastar quatro ou cinco anos em bancos universitários que “hipoteticamente” são receptores de conhecimento.

*Publicado originalmente na coluna Ficções, Caderno Tem!, do Oeste Notícias (Presidente Prudente – SP) de 20 de abril de 2012.

sexta-feira, 13 de abril de 2012

CONTEÚDO ADULTO


A conversa rolava desde o subsolo, mas no terceiro andar tomou fôlego quando a assistente social, salto alto e caixa pesada, ouviu os argumentos da advogada descolada, do arquiteto frustrado, da arquiteta observadora, do publicitário vazio e do contador arrasado – estes dois desceriam no vigésimo terceiro, consultório do endocrinologista; o publicitário, consulta, o contador, imposto de renda.



- Eu vejo, sim. Enfatizava a advogada descolada. – Vejo páginas de internet de conteúdo adulto. Qual o problema? Estamos na segunda década do Século XXI. Temos Constituição democrática que, vinte e quatro anos atrás, estabeleceu relações de igualdade entre homens e mulheres. Sou independente, malho todos os dias, pago minhas contas, dei sorte de nascer num país em que a liberdade é assegurada a todos.



- Acho um absurdo, interrompeu o contador arrasado. Essas páginas de conteúdo adulto são destinadas exclusivamente aos homens. Mulheres que usam a internet para tais fins, não sei, não... Que tipo de mulher é essa?



- Uma mulher que não tem vergonha na cara, declarou a assistente social, segurando a caixa com muita dificuldade. – Se soubesse de alguma funcionária que entrasse nessas páginas, certamente solicitaria o desligamento da empresa. Mulher de bem não se dá ao desfrute de páginas de conteúdo adulto. Onde já se viu uma coisa dessas?



- Viu? Não estou sozinho. Ela também concorda comigo, retomou o contador, constatando o décimo sexto andar.



- Sinceramente, o publicitário manifestava-se, eu não vejo o menor problema. A advogada já disse tudo: somos um país de liberdade. Homens e mulheres têm direitos iguais. Se os homens podem acessar páginas de conteúdo adulto, as mulheres também possuem idêntico direito.



- Vejo todos os problemas, manifestou-se o arquiteto frustrado. Essas mulheres não têm liberdade, mas libertinagem. Perderam a vergonha na cara desde o momento em que decidiram largar o fogão, o tanque de roupa e os serviços domésticos. Estão roubando nossos lugares no mercado de trabalho. Mulher minha fica em casa. Obedecendo minhas ordens.



- Concordo em partes com o senhor, disse a assistente social. Quem não consegue trabalho digno, a melhor ocupação é ficar em casa. Eu mesma, enfatizou, dedico-me ao trabalho dez horas por dia. Quando chego, faço jantar. Sou tradicional. Mulher para mim tem que se dar o respeito. Nada de entrar na internet em busca de página de conteúdo adulto. O mundo está perdido. O que vamos deixar para os nossos filhos?



O elevador estacionou no vigésimo segundo andar. A assistente social concluiu suas perspectivas sobre o tema. Antes de sair, o salto enroscou na pequena saliência deixada pelo elevador, torceu o pé e a caixa que carregava abriu-se violentamente no chão, espalhando coleções completas de Private, G Magazine, Brasileirinhas...



- Para os “nossos” filhos eu não sei que mundo deixar, ironizou a advogada descolada, mas para “seus” filhos, revistas de conteúdo adulto certamente não faltarão.



As portas do elevador encerraram as risadas. O contador e o publicitário desceram no vigésimo terceiro. Antes de se despedir, o publicitário trocou cartões com a advogada, sugerindo um vinho no apartamento dele para discorrerem mais sobre o assunto.



O elevador retomou seu trajeto ininterruptamente até o trigésimo quarto andar onde o arquiteto frustrado, a arquiteta observadora e a advogada descolada mantinham seus escritórios. A arquiteta pediu que a incluísse no vinho caso o encontro com o publicitário desse certo. A advogada descolada virou para o arquiteto: não gostaria de se encontrar com eles qualquer tarde dessas? O profissional de formas, estéticas e cores: - Não me misturo com pessoas desse tipo.



A advogada descolada advertiu que sempre existiria tempo para mudar de idéia. Sentou-se na sua cadeira e, vinte minutos depois, a secretária informou que o arquiteto do escritório vizinho desejaria conversar com ela.



- Sempre existe tempo para mudar de idéia? Será que posso levar minha esposa nessa tarde de vinhos também?





*Publicado originalmente na coluna Ficções, Caderno Tem!, do Oeste Notícias (Presidente Prudente – SP) de 13 de abril de 2012.

sexta-feira, 6 de abril de 2012

PESCARIA NO MATO GROSSO

Juninho Gaeco nos convidou para churrasco de aniversário no sítio do doutor. Chuva intensa antecedeu nossa chegada e estourou os fios de energia elétrica, prontamente restabelecida graças ao eficiente trabalho da equipe da concessionária. Entre cervejas, Pepsi e guaranás (a Coca-Cola só chegou ao fim do evento), o Urutau preenchia regularmente o silêncio noturno com sua sinfonia afinada e ritmo pontual.

As conversas giraram em torno de política, de urbanização, da rentabilidade agrária – alugando-se terras às usinas ou grandes fazendeiros ou investindo em gado leiteiro – dos passeios, das mulheres. Quando chegamos à pescaria, alguém perguntou em que lugares costumava pescar e, diante de minha afirmação de que não pescava nem sabia manusear os apetrechos necessários, a risada do grupo abafou o canto do Urutau que, paciente, voltaria seguidamente a entoar sua melodia.

Assunto puxa assunto, a proposta de viajarmos no feriado de páscoa para capturar alguns peixes trezentos e vinte e sete quilômetros contando de Presidente Epitácio até os fins de Mato Grosso do Sul prontamente aceita por oito companheiros que calcularam a necessidade de três carros bem equipados para levar barracas, mini-fogão, dois botijões de gás...

Quando passamos de Presidente Epitácio, os primeiros raios de Sol. A paisagem se transformou e o cansaço desapareceu em favor da empolgação. Faltavam horas até o destino de modo que peguei o jornal, li a revista e bebi meio litro de Coca-Cola. Paramos num posto de combustíveis: veículos e banheiro.

O doutor abriu o porta-malas em busca de alguns mapas, guardados numa bolsa verde-escura. Enquanto procurava, a mão bateu numa sacola térmica de tamanho médio.

- Mas que raio de gelo é esse? Indagou, estranhando a bagagem.

- Um quilo e meio de peixe que comprei para... Mal terminei de falar, Juninho Gaeco estrondou numa risada, acenando euforicamente não apenas para os companheiros, mas igualmente aos clientes do posto: um pescador que, indo pescar, trazia peixe de casa.

Menos de vinte minutos, motivo de chacota. Bastava caminhão, carro ou moto estacionarem para abastecer, carroça ou bicicleta calibrarem os pneus para que alguém se aproximasse:

- Levando peixe para pescaria? Quem leva carne para o churrasco?

Os quilômetros restantes fomentaram a chacota. Vez por outra, algum dos passageiros dos outros carros nos telefonava para perguntar quanto custava o quilo de peixe paulista. Não seria mais barato pegar o mesmo peixe no rio a que nos dirigíamos ou, pelo menos, na cidade pela qual passaríamos a fim de comprar os produtos que ainda faltavam?

Quando entramos na cidade – distante setenta quilômetros de onde montaríamos as barracas e promoveríamos a grande pesca – supermercados, farmácias, papelarias e cabeleireiros fechados. O frentista do único posto de combustíveis informou do feriado prolongado. Comércio? Dali a três dias.

Montamos novamente nos carros e descemos no destino. Confesso que o lugar – uma espécie de lago de águas quase transparentes, árvores de tamanhos variados e clima bastante agradável – me tomou os sentidos por alguns minutos. A viagem mostrava-se mais interessante do que eu pesava.

Cinco horas da tarde e nada de peixe. Mudaram de lugar, de posição, de técnicas, de varas, de iscas, de intensidade de jogar o anzol. O Sol despedia-se lentamente e os sete pescadores, cansados de manusearem suas ferramentas sem alcançarem sucesso, sentaram-se na grama. Um deles grunhia reclamações pela altura do rio. Outro sugeria trago de cachaça. Um terceiro relembrava do tempo em que acampava, justamente àquele mesmo lugar, com o pai, o tio e um primo e, depois de retirar o peixe, devolvia-o às torrentes para que retomasse a vida e descobrisse a morte em outras mãos. Lembranças, conversas fiadas, histórias de pescador e novas empreitadas sucediam-se na roda de conversa quando Juninho Gaeco disparou:

- Vamos comer!

Perguntei o que comeríamos se ninguém tinha pescado nada. O doutor já tirava o peixe de minha sacola térmica enquanto outro de nossos companheiros atiçava um tímido de fogo.

*Publicado originalmente na coluna Ficções, caderno Tem!, do Oeste Notícias (Presidente Prudente – SP) de 6 de abril de 2012.