O primeiro exercício elementar, para quem deseja entrar no mundo da filosofia, consiste no questionamento rotineiro. Questionamento rotineiro distante da mediocridade, da estupidez e da frugalidade, mas que parte da mediocridade, da estupidez e da frugalidade de conceitos imutáveis ou cristalizados para definir as relações sociais, os caminhos teológicos, as visões de verdade ou de mentira. A Filosofia esclarece e dá-nos visão diferenciada acerca de conceitos milenares que importunam: amor, morte, solidão, divindade, ética, paixão, felicidade... São tantos os temas – cuja perspectiva analítica se modificou em função da evolução das tecnologias, mas manteve a essência – que levaríamos mais de dúzias de colunas para enumerá-los.
Jean Paul Sartre, influente filósofo francês do século XX e expoente do existencialmente, desenvolveu atividade intelectual não apenas no campo filosófico, mas também no literário a ponto de receber – e, comicamente, recusar – o prêmio Nobel de Literatura. Discutiu temas que nos são caros. “A idade da razão” retrata a vida do jovem Mathieu que, transcorrendo o enredo lentamente através de divagações psicológicas e confrontos pessoais, busca a definição da maturidade, simbolizada, ao fim, pelo equilíbrio do espírito.
Não são apenas os filósofos que recorrem aos anseios filosóficos para discuti-los na Literatura, mas também escritores debateram – ou pelo menos ensaiaram provocações – a Literatura através de construções filosóficas como em “O lobo da estepe”, de Hermann Hesse. Os questionamentos se avolumam de tal maneira que o enredo encurrala o leitor nos limites de sanidade: o protagonista da trama é são? O leitor entra e sai dos devaneios do Lobo questionando-se ou respaldando suas teorias?
Quando o professor e articulista de jornais Márcio Alexandre da Silva lançou “Pode morrer de tanto amar?”, a primeira pergunta recaiu sobre se o título esconde mote literário romântico ou inquietação filosófica. Ao fim e ao cabo, a Filosofia demonstra o vigor na novela desse jovem intelectual que, cerrando-se nas fileiras de Sartre e lançando a Filosofia na linguagem literária, nos apresenta painel das peripécias em que o narrador, durante todo o tempo, destoando das premissas fundamentais que alicerçam as dúvidas, parece aflito em apontar respostas, soluções, resultados.
Utilizando-se de complexo jogo de cenas que perpassam dos anos 1970 aos nossos dias, a narrativa transcorre sutilmente no interior paulista, denunciando, em forma de ficção, os problemas de uma família atacada pelos problemas da geada, as péssimas condições de vida da população – não apenas da zona urbana, mas igualmente da área rural – o descaso dos órgãos públicos com o povo, os problemas da gravidez precoce, sem planejamento e sem perspectivas (os pais do protagonista possuem menos de dezoito anos na ocasião de seu nascimento e sobreviverão com o patrimônio de “de duas porcas, três galinhas e um burro empacador”), os questionamentos em torno da felicidade escamoteados pelo narrador e retomados ao longo da trama, os jogos de futebol – esporte aparentemente inerente ao desenvolvimento da personalidade do brasileiro – como pano de fundo de várias cenas...
As mortes e as mortes lançadas ao título desta resenha parecem tão insignificantes quanto insignificantes apresentam-se as réplicas filosóficas. A complexidade não está em descobrir novas perspectivas ou inventar conceitos, mas em tornar visíveis conceitos que julgávamos imutáveis ou cristalizados, proporcionando ao leitor (interlocutor) um novo olhar sobre velhas paisagens. Numa sociedade de líquidas relações, de líquidos desejos e de líquidos objetivos, sentimentos considerados profundos adquirem novas formas e novas maneiras de enfrentamento e, ao fim das contas, o amor romântico – que nos consome, que nos adoece, que nos lança em devaneios e nos atrofia as atividades – aproxima-se mais do comportamento ignominioso do que salutar, benéfico e desejado. Quando o sentimento amoroso nos invade abruptamente, somos levados ao delírio, à estupefação, à incredulidade. Nesse estágio, apenas uma pergunta pode desmontar nossas convicções: morre-se de tanto amar?
Pode morrer de tanto amar?
Márcio Alexandre da Silva – CBJE – 36 p. – R$ 20,00
Contato com o escritor: marciobressane@hotmail.com
*Publicado originalmente na coluna Ficções, caderno Tem!, do Oeste Notícias (Presidente Prudente – SP) de 13 de janeiro de 2012.
Um comentário:
Adoro acordar todos os sábados e me deliciar em suas crônicas, você é incrível, escreve como poucos, sou fã, o que seria das minhas manhãs de sábado sem lê-lo meu querido professor?
Profissional como poucos, e de uma simplicidade apaixonante!
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