sexta-feira, 17 de junho de 2011

DONDOQUINHA DE QUATÁ



Dizem as boas línguas de Quatá, pequena cidade entre Paraguaçu Paulista e Presidente Prudente, que uma mulher de inteligência acertada e beleza discutível planejou um golpe. Percebeu que, no sábado, depois da missa e antes da meia-noite, algumas meninas se exibiam na Avenida, facilitando o convite para uma voltinha nos automóveis que desfilavam interminavelmente. Analisou o vai e vem dos veículos até, numa terça-feira à tarde, descobrir que um carro quase zero quilômetro, dirigido por um gordo e careca, integrava a frota do dono de uma sapataria de Presidente Prudente.

Comprou o melhor vestido azul em doze vezes com juros em notas promissórias, pediu mil e um favores à cabeleireira para fazer um penteado de graça, convenceu a manicure a uma esmaltada a preço de custo e às nove e meia, olhar de cobra e rastejando no mar de meninas que vinham e iam, mantendo o andar litúrgico da esperança da conquista, parou na frente do carro do dono da sapataria.

O gordo e careca acenou, abriu a porta e em menos de meia hora ela já contava dos problemas. Queria compromisso sério, estudar, trabalhar, constituir família. A conversa fiada de golpista persuadiu o dono da sapataria que, em menos de três meses, presenteou-lhe televisão de plasma com canais pagos, aparelho de som, computador, motocicleta zero quilômetro, compra mensal no supermercado e na farmácia.

Desenrolavam-se os planos numa velocidade satisfatória de modo que, ao fim do primeiro ano de namoro, as faces de coitada e a voz ardilosamente modulada para fragilizar sua imagem convenceram o namorado a suportar o que seria o sonho de sua vida: a faculdade de odontologia.

Quem consegue ler nas entrelinhas saberá que o dono da sapataria nem pensou na possibilidade de pagar-lhe um bom cursinho, mas, analisando a papelada da matrícula de uma universidade em Marília, assumiu as responsabilidades financeiras de oito semestres.

Nos primeiros fins de semana, voltava contente, cheia de saudade, compartilhando as novidades e reclamando da dificuldade do entendimento de algumas disciplinas. O gordo e careca limitava-se a tecer considerações carinhosas e expunha as palavras de apoio disponíveis em seu vocabulário, sempre se esforçando para estimular a namorada que, a partir do segundo semestre, iniciou uma ladainha para receber aumento de mesada e diminuiu as visitas à cidade natal.

Numa quarta-feira de madrugada, um homem de voz dorminhoca atendeu o telefone celular dela. Numa quinta-feira, véspera de feriado, o namorado gordo e careca entrou na Avenida Sampaio Vidal, atravessou a cidade e encontrou a namorada vestindo roupas transparentes, conversando no sofá, ao lado de um homem de cuecas. Muito calma, apresentou o hóspede como o primo que lhe dava força na solidão e o namorado, homem generoso e compreensivo, apertou a mão do rapaz e o agradeceu efusivamente.

Formou-se dentista, abriu um consultório em Quatá, mas constatando a pouca circulação de dinheiro, convenceu o namorado a montar uma filial em Presidente Prudente. O namorado gordo e careca comprou uma sala comercial na Avenida Coronel Marcondes e pôs o imóvel no nome dela adiantando-lhe dinheiro de dois anos de água, luz, telefone, manutenção, secretária e condomínio.

Por que não fazer uma especialização em uma das largas áreas da odontologia? Escolheu uma faculdade – obviamente caríssima – de São Paulo e lá se metia três dias por semana durante um ano e meio. O material, comprado na capital, perdia sua finalidade prática pelo descuido ou no transporte até seu consultório ou no manuseio.

Casamento. Mais de sete anos namorando. Nem Labão esperara tanto tempo. Conversaria com ela no fim de semana. Na quinta-feira pediu um carro de presente e, raspando as últimas economias, comprou um Vectra. No almoço de domingo, não compareceu. Mandou um mensageiro: “Acho que sou muito fina para um caipira como você. Tudo acabado. Não me procure mais”. Só então percebeu o golpe de quem, graças a ele, se tornara uma dondoquinha. A dondoquinha de Quatá.


*Publicado originalmente na coluna Ficções, caderno Tem!, do Oeste Notícias (Presidente Prudente – SP) de 17 de junho de 2011.

2 comentários:

Anônimo disse...

Muito criativa sua crônica.
Bjs

*Rú* disse...

"andar litúrgico da esperança da conquista"
ISSO FOI FENOMENAL!