sábado, 13 de novembro de 2010

CACHORRÃO

A advogada empilhou os processos no balcão, puxou o telefone móvel e, enquanto ligava ao escritório para orientar a secretária sobre um cliente que a procuraria por volta das três e meia, sinalizou a devolução da papelada. A mulher gorda e simpática jogou a carta oficial no teclado do computador do colega, pegou uma caneta azul, mão sobre os processos:



- A senhora vai devolver tudo ou só alguns?



Concluiu a orientação, jogou o telefone dentro da bolsa, puxou uma folha:



- Devolvo todos, mas gostaria de saber se os processos de divórcio da juíza mal-amada já estão disponíveis.



A atendente e a advogada se entreolharam, confirmando implicitamente o sucesso da alcunha da magistrada da octogésima oitava vara especial.



- Você é essa advogada? Lidiane Cachorrão?



- Sim, sou eu, respondeu alegre, equilibrando-se melhor na sandália de onze centímetros, ajeitando o cabelo e sorrindo ainda mais depois de reconhecida. A fama batia à porta e dava-lhe os primeiros resultados práticos.



- Você é parente do Cachorrão? A funcionária curiosa indagou, esperando uma resposta da advogada cujos louros da fama escapavam pelas brechas do ar condicionado. Como geralmente a comparassem ao advogado Bento Cachorrão, que militava há mais de trinta anos em Maringá, interior do Paraná, desfez o sorriso e, tentando manter alguma simpatia nos olhos altivos: – Geralmente me perguntam sobre isso, mas eu não sou parente dele, replicou enquanto voltava a se comunicar com a secretária.



A atendente entrou no imenso arquivo. A advogada desligou o telefone a tempo de presenciar as estantes inclinarem-se, um estrondo ecoar seguido de grossa nuvem de poeira. Transeuntes, advogados, estagiários, promotores e partes pensavam tratar-se de um atentado. Uma senhora de idade avançada, carregada pela nora em uma cadeira de rodas, reuniu forças e se pôs a correr, escondendo-se atrás do quadro comprado de um artista local.



- Uma bagunça danada, retomou a escrevente, carregando cinco processos em que a advogada figurava como responsável. Então você não é parente do Cachorrão? De vez em quando eu o vejo andando por aí. Outro dia mesmo o vi numa bermudinha! Naquela hora até me senti mulher.



A advogada ria, imaginando que Bento Cachorrão aparecesse uma ou duas vezes ao semestre para desenrolar algum processo complicado. Maringá ficava quase a trezentos quilômetros. Percorreria trezentos quilômetros para andar de bermudinhas?



- Aí, eu não me controlei. Cheguei perto dele, mas quando eu ia dar uma beliscada naquele bumbunzinho, um amigo dele se aproximou e fiquei com vergonha. Um homem daquele... De noite, quando fui dormir, tive cada sonho que nem posso contar, confidenciava a escrevente, baixando o tom de voz para esconder a informação e estabelecer grau de intimidade com a advogada que, atenta aos despachos, pensava em assuntos estranhos aos relatos eróticos.



- Levo esses dois, pediu depois de guardar a agenda e verificar se a secretária tinha telefonado mais uma vez. Para não se mostrar indiferente, contasse um pouco mais.



- Então menina, esse Cachorrão é o homem dos meus sonhos. Outro dia imaginei que tínhamos viajado para Petrópolis. Ele me olhava, recitava uns poemas do Bocage, parava o carro... Outro sonho, me dava aulas de natação. A gente alongava, caminhava em volta da piscina para aquecer, pulava e tchibum! Já estou ficando com calor só de pensar...



- Mas, interrompeu a advogada, de que Cachorrão você está falando? Do advogado de Maringá?



- Advogado de Maringá? Aquele traste, danoso e medonho? Imagina! Eu estou falando daquele metro e oitenta de maravilha que é o Cachorrão, professor de natação da Escola Sete Quedas. Aquilo é homem! Homem para mais de metro!



- Ah, sim, confirmou a advogada. Esse Cachorrão, professor de natação da Sete Quedas eu conheço.



- Ele não é demais? Não dá vontade de sair rolando com ele pela grama?



- Se dá, finalizou a advogada, assinando o documento de retirada dos processos, correndo o zíper da bolsa e voltando os olhos para a escrevente: - Faço isso todo dia. Esse Cachorrão é meu marido!



*Publicado originalmente na coluna Ficções, no Caderno Tem!, do Oeste Notícias (Presidente Prudente – SP) de 12 de novembro de 2010.

2 comentários:

Anônimo disse...

VICÊNTÔNIO... O GÊNIO DAS PALAVRAS... O QUE POSSO DIZER SOBRE TAL PESSOA TÃO SINGULAR? - EXTREMA ADMIRAÇÃO! - CRÔNICA PERFEITA. MAIS UMA PÉROLA RARA.
PARABÉNS NOBRE AMIGO.

RÚBIA

nelson regis disse...

Muito interessante.
Um novo estilo literário que ainda não conhecia.
Gostei.Com essa leitura vamos divagando junto com a imaginação sua (do autor), até chegar ao final conforme vamos sendo conduzidos com a sabedoria imaginativa excelentemente elaborada.