De meados do século 20 em diante, a discussão dos rumos da Literatura ocupou não apenas acadêmicos, mas também estudiosos, leitores e intelectuais: a Literatura deveria desempenhar um papel voltado estritamente ao refinamento estético (sustentando o que alguns denominavam de atuação conservadora) ou às denúncias sociais (flanando na corrente esquerdista)?
Estados Unidos e União Soviética simbolizavam as potências antagônicas em disputa pela hegemonia política. Os países latino-americanos que aderiram aos golpes militares como retórica de manutenção da ordem, do desenvolvimento e do progresso receberam apoio expresso ou velado dos Estados Unidos. A União Soviética defendia seus interesses subsidiando ações de treinamento ideológico, político e militar.
O tempo se encarregou de desmascarar a estrutura defendida pelo capitalismo e pelos americanos. A União Soviética deu seus últimos suspiros e agonizou no início dos anos 1990. Os países que continuaram socialistas ou comunistas ou entraram em colapso (como alguns europeus), ou consolidaram ditaduras (nos evidentes casos de Venezuela, Cuba, China e Coréia do Norte).
O antagonismo entre socialismo e capitalismo se tornou questão especulativa uma vez que este se sobrepôs àquele, exigindo mudanças rápidas nos meios de produção e na distribuição de renda em grandes potências como Rússia e China.
Boa parte dos socialistas do século 21 – perdida pela falta de antagonismos, maniqueísmos, dicotomias – rumou à inexplicável incapacidade de compreensão contemporânea. No entanto, observando o ambiente instaurado, outros continuaram acreditando no socialismo simbolizado em tentativas de modificações realizadas pela sociedade – e também pelo Estado – dentro do liberalismo. Advogado e ex-ministro da Justiça, Tarso Genro defende essa perspectiva em dos capítulos de “O mundo real” (L&PM, 2008, 136 p.)
As discussões teóricas são benéficas na medida em que acrescentam valores sólidos às mudanças sociais, mas se perdem antes de chegarem ao grande público. Para tratá-las de maneira abrangente, a arte da palavra se constitui em meio sutil e elegante. Entre os grandes escritores contemporâneos dotados de sutileza e elegância, o uruguaio Eduardo Galeano.
Eduardo Galeano recebeu diversos prêmios literários e jornalísticos, publicou vários livros no Brasil e no exterior, captou com delicadeza as nuances do cotidiano e desenvolveu um texto límpido e cheio de estilo – comparado, no Brasil, ao do jornalista Mino Carta.
A questão, em suma, se concentra na capacidade com que desenlaça os problemas da rotina. Mestre da escrita curta, Galeano usa a crônica – gênero bastante difundido e reconhecido entre nós – para transmitir mensagens profundas. São reflexões sobre assuntos que vão da culinária ao esporte, da beleza à fome, da inteligência ao modo rústico de vida.
Em BOCAS DO TEMPO, relançado em formato de bolso, sobressaem animais, educação, morte, casamento, relevância da água, do mar, do vinho, das confusões e peculiaridades entre ciência e religião, de Literatura, de livro, de respeito à pluralidade de culturas deixando para o fim, assim como numa fábula, o desfecho moral, marcado por uma mensagem implícita.
Galeano transfere beleza aos tópicos socialistas pela singular possibilidade de conscientização pela palavra. Quando, por exemplo, trata do vinho, recorda-se de uma taberna cujos proprietários marcavam na parede as dívidas dos consumidores. Uma vez por ano, a taberna era pintada, as contas esquecidas, a vida comemorada e os novos clientes batizados “com um pequeno toque de vinho na testa”. (p. 95) A mensagem: estamos em busca da vida plena ou de cobranças que girarão a máquina capitalista?
Em “O professor”, a concorrência e o individualismo – características do sistema liberal – são atacados suavemente no relato de um concurso literário promovido por uma escola a que fora convidado para composição do júri. Os três julgadores leram os trabalhos e proclamaram os resultados: “O concurso foi vencido por todos, e para cada premiado houve uma ovação, uma chuva de serpentina e uma medalhinha doada pelo joalheiro do bairro”. (p. 61) Existiria maneira mais suave de transmitir práticas socialistas?
Em tempos em que não se é nem socialista nem capitalista, nem de esquerda nem de direita, nem com Marx nem contra Marx, Eduardo Galeano reafirma sua importância no cenário literário mundial por meio de críticas sociais enveredadas sutil e elegantemente em criações literárias.
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BOCAS DO TEMPO (edição de bolso)
Eduardo Galeano – LPM – 352 p. – R$ 22,00
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Em tempo: a página da editora L&PM (www.lpm.com.br) traz um histórico de vídeos com os principais nomes da Literatura brasileira. Entre eles, o documentário esmerado sobre vida e obra do romancista Luiz Antônio de Assis Brasil e entrevistas com Moacyr Scliar, Sergio Faraco, Affonso Romano de Sant’Anna, Marina Colasanti, Luis Augusto Fischer e, claro, Eduardo Galeano.
*Publicado originalmente na coluna Ficções, caderno Tem!, do Oeste Notícias (Presidente Prudente – SP) de 21 de maio de 2010.
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