O escritor ensaia várias possibilidades de ação e, depois de algumas tentativas, uns trabalhos se sobressaem aos outros. As escolhas, as vontades ou as indicações em relação aos livros, aos gêneros e aos esforços estéticos ou narrativos nem sempre coincidem com o que a crítica ou os leitores descobrem e com o que se identificam.
O trabalho de Valesca de Assis se destaca pela atuação em vários gêneros. Seja como contista (participando da “Antologia de contistas bissextos”, organizada por Sérgio Faraco), seja como cronista (em diversas antologias, a mais recente delas a “Cronicando”, ou de trabalhos individuais como “Diciodiário”), seja como romancista (com o premiado “Harmonia das esferas”), seja como escritora infantil, destacando-se com “Vão pensar que estamos fugindo!”.
“Vão pensar que estamos fugindo!” conferiu-lhe um lugar na literatura infanto-juvenil. O enredo se agarra à vinda da família real portuguesa ao Brasil. Fugindo das tropas de Napoleão, Dom João VI embarcou praticamente toda a corte em alguns navios e atravessou o oceano, criando escárnio e deboche a quem, além de covarde, se veria retratado historiograficamente como traído, atrapalhado e glutão. Valesca de Assis transpôs a densidade da história oficial por meio da suavidade romanceada. Quando alcançou essa suavidade, chamou a atenção sobre a obra, finalista em concursos literários.
Dois anos após o sucesso de “Vão pensar que estamos fugindo!”, a autora continua investindo na criação literária para o público infantil, desta vez brindando-nos com “Um dia de gato”. O enredo se concentra na vida cotidiana de um gato e um cachorro que, depois de firmarem um pacto, trocam de lugar por uma noite. Tato, o gato, sente inveja de Bolão, o cachorro da família. Especialmente porque Bolão, festejado por crianças e pessoas em geral, é livre. A idéia de Tato é viver, pelo menos por um curto período, a rotina de Bolão.
Acertada a troca, Bolão entra em casa e Tato sai para a rua. O problema crucial é que os dois animais estranham a nova forma de vida. Bolão, o cachorro, detesta o contato com a televisão e não fica muito animado de dormir sobre os pés da menina em um edredom. O contato com o edredom o deixa calorento e provoca-lhe pesadelos de modo que, assim que desperta, pula para o chão.
Enquanto Bolão, o cachorro, se irrita, Tato, o gato, também se lastima de estar na casa do companheiro uma vez que, logo depois do início da chuva, a água invade o ambiente e, por mais que mie, ninguém aparece para socorrê-lo. Nos sonhos, Tato, o gato, deita-se num local quentinho, cheio de comida. Tato procura alimentos, mas encontra apenas bolachas velhas e ossos duríssimos de roer.
Os trovões da mesma chuva incomodam Bolão que começa a correr dentro da casa, derrubando objetos e, por fim, latindo para chamar a atenção dos donos. As crianças acordam e chamam o pai que, irritado, imaginando que Bolão estivesse latindo de fora, joga um sapato velho que atinge Tato, o gato.
Assim que amanhece, Tato, o gato, espera a primeira oportunidade e, aberta a porta, corre para se esquentar no cobertor. Bolão, o cachorro, finalmente chega à cozinha e, vendo alguém preparando a comida do gato e a deixando no chão, ataca o prato de ração e leite e, mal encosta os lábios, detesta o sabor. A funcionária da casa grita e dá umas vassouradas em Bolão que, feliz de novamente estar do lado de fora, provavelmente deve ter pactuado nunca mais voltar ali.
Naquela mesma manhã, Bolão, o cachorro, e Tato, o gato, voltam às suas vidas normais. O cachorro, na liberdade das ruas; o gato, na liberdade da casa.
O livro de Valesca de Assis abrange um tripé temático: a insatisfação, a ação, a reflexão. O gato lamentava sua falta de liberdade. Insatisfeito, partiu para a ação e propôs ao cachorro a mudança temporária de lugares. A mudança provocou uma reflexão sobre os efeitos negativos da troca.
Em síntese, Valesca de Assis, com sua habilidade de filósofa aliada à capacidade literária, traz muito de profundidade nas entrelinhas de seu novo trabalho: um livro para crianças inteligentes, com suporte de atividades e ilustrações de Antônio Maciel.
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Valesca de Assis – Libretos – 40 p. – R$ 25,00
*Publicado originalmente na coluna Ficções, do caderno Tem!, do Oeste Notícias (Presidente Prudente – SP) de 30 de abril de 2010.
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