domingo, 26 de dezembro de 2010

PRESENTE DE NATAL

Para Vitalino e Lourdes



Geralmente aos fins de semana o neto aparecia no sítio dos avós paternos que, felizes como apenas os avós são, preparavam bolos açucarados, gelatinas coloridas, milhos cozidos, frango com arroz, guloseimas, sucos de graviola, de laranja, de melancia e de manga. Apesar de todo o arsenal alimentício, o menino gostava de andar a cavalo com o avô, de recolher os animais ao galinheiro, de espalhar a comida aos porcos, de preencher o pote de sal dos cavalos, de ajudar a avó a cuidar da tartaruga e de auxiliar o pai a procurar os coelhos escondidos atrás de árvores mágicas.



A chegada do natal transtornou a cabeça de Arthur: o pai sugeriu uma bicicleta, a mãe idealizou um carrinho de bateria, o avô materno prometeu uma pá de plástico, a avó materna desejou um cachorrinho de pelúcia, o avô paterno propôs tênis coloridos que todos os garotos de sua idade estavam usando e a avó paterna disse, em segredo, que escolhesse o que quisesse. O menino perdia-se nas propostas, mas ficou surpreso ao ouvir pai, mãe, avô e avó planejando arremessar Janjão ao fogo.



Janjão era um leitão de sete meses que nascera depois da Páscoa e estava sendo mais alimentado do que os outros porcos desde o São João. Arthur dava-lhe comida três vezes por dia: às oito e meia, ao meio-dia e às cinco horas. Janjão comia tudo, engolia bons litros de água e, quando não estava metido na lama, passeava sorridente dentro da cerca. Torcia o rabo, mexia o focinho, dava pulinhos, corria, caía, rolava. Aos poucos, Arthur tomou afeição pelo porco. Como os pais e os avós queriam comê-lo?



Precisava salvá-lo! Mas, como? Ficou atento às conversas natalinas. Na quinta-feira, escutou o pai telefonando para o avô e marcando a degola para o dia seguinte. Na sexta-feira pela manhã, pai e filho entravam no sítio antes do nascer do Sol. O pai calçou o par de botinas, montou no cavalo e saiu para ajudar o avô a deslocar doze vacas para o pasto vizinho.



Assim que pai e avô desapareceram na estrada, Arthur entrou no chiqueiro, pisoteou o resto da comida, meteu-se na lama e puxou Janjão pelas pernas, mas o porco, bem alimentado e gordo, não saiu do lugar. Arthur tentou, sem sucesso, puxar as pernas traseiras. Embora escandaloso, Janjão ficou em silêncio, talvez compreendendo a sinceridade de suas intenções. Arthur tentou empurrá-lo nas costas, no focinho, de ponta-cabeça, porém Janjão continuava imóvel.



Um relampejo brilhou na memória de Arthur: lembrou-se do avô que, sem conseguir carregar uma melancia muito grande, saiu rolando a fruta até chegar em casa. Rolando Janjão morro acima, escondeu-se com ele atrás de uma árvore.



O pai e o avô deram por falta de Arthur ao voltarem. A avó, pensara que o menino tivesse ido com o marido e o filho, entrou em prantos. Em poucos minutos, os três gritavam, remexiam no estábulo, reviravam materiais de plantio, olhavam embaixo do trator, ao lado da caixa d’água, no sótão, dentro dos carros.



Quando estavam do outro lado, Arthur, que espreitava de longe, rolou Janjão às pressas, entrou pela cozinha, atravessou a sala, abriu a porta do quarto e o meteu embaixo da coberta azul. Pegou água e verduras, socou-se também embaixo da coberta. O disfarce provavelmente se manteria por longo tempo se, por volta das seis da tarde, o pai não tivesse escutado grunhidos, entrasse desesperado no quarto e encontrasse o filho.



Quando os tios, os primos, os amigos, os conhecidos, os vizinhos da cidade e do campo apareceram por volta das nove horas, estranharam o porco no meio da mesa: olhos de cereja, orelhas de ovo cozido, patas de cenoura, boca de banana, nariz de beterraba, barriga e costas de maionese, rabo de batatinhas, cabeça de melão...





***





Arthur é um garoto de carne, osso e travessuras. Filho da brilhante Daniele e do formidável Ronaldo Costa. Daqui a quinze, trinta ou quarenta anos, espero que, se você tiver lido esta história, tenha a mesma satisfação que eu tenho hoje: saber que minhas avós – Laura e Isaura – são indispensáveis na minha vida feliz.





*Publicado originalmente na coluna Ficções, no caderno Tem!, do Oeste Notícias (Presidente Prudente – SP) de 24 de dezembro de 2010.

sábado, 18 de dezembro de 2010

MÉDICO NOTA 10

O casal já folheara a quarta revista velha do consultório. Impaciente, a mulher encostou na mesa da atendente e perguntou quanto tempo ainda demoraria. Mais de hora e meia esperando. Para que pagavam convênio médico tão caro? Para enfrentar os mesmos transtornos da caótica saúde pública? Seriam chamados em breve. Trinta e sete minutos depois, mulher e marido entravam no consultório do clínico geral. Transtornada pela contrariedade da espera prolongada. O marido advertira que não fossem àquele inferno.



- Bom dia, disse o médico sem parar de escrever no receituário e sem levantar os olhos. Em que posso ajudá-los?



Sem convite, a mulher sentou-se apontando a cadeira disponível para o marido. Algumas dores do lado esquerdo do corpo quando caminhava por muito tempo, corria duas vezes por semana ou nadava na piscina do clube. O marido perguntou sobre dores nas costas que sentia há alguns meses.



Ele precisava de um oncologista e ela de meio litro de suco de maracujá com bastante açúcar. A mulher arregalou os olhos:



- Doutor, meu marido não precisa de um oncologista. Oncologista não é médico de câncer? Ele não tem câncer.



- Ah, não? Interrompeu o médico, olhando pela primeira vez o casal sentado. Então o senhor deve procurar um médico de coluna que é o... Esqueci o nome, mas a atendente procura no nosso catálogo e informa corretamente para vocês. É só isso?



- Claro que não, doutor, respondeu a esposa. Vim reclamar de dores do lado esquerdo do corpo, mas o senhor disse para tomar suco de maracujá com bastante açúcar.



- O suco vai ajudá-la a relaxar e o açúcar manterá sua pressão baixa de modo que a senhora...



- Vou morrer, doutor. De modo que vou morrer. Não sei se leu minha ficha, mas sou diabética. Se tomo açúcar todos os dias, vou morrer.



- Realmente, não pode tomar açúcar. Mas a senhora tem certeza de que é diabética? Desde quando tem essa informação? Já fez exames?



A mulher levantou-se bufando, o marido puxou-a de volta:



- Se tenho certeza, doutor? Tenho trinta e dois anos e desde os dezenove controlo o açúcar. O senhor pergunta se tenho certeza?



- Talvez seu problema seja no rim esquerdo. A senhora pode fazer um exame. Verificaremos o grau de funcionamento dele. Enquanto isso, alimente-se bem, faça bastante churrasco no fim de semana e não se esqueça de me convidar...



- Para nosso velório, doutor? O colesterol dele anda acima do normal há três meses, estamos numa luta para regularizar e nós dois somos hipertensos. Não comemos sal! Como fazer churrasco sem sal, sem aumentar o colesterol e sem risco de enfarte?



O médico cruzou os braços, disse três ou quatro palavras, diagnosticou as dores do lado esquerdo: dengue. O marido olhou em volta, procurando alguma câmera escondida. Uma piada dessas só poderia ser de um desses programas de televisão. Onde estavam as câmeras? Mais de uma câmera! Certamente.



A mulher esbravejou qualquer coisa, gesticulou agressivamente, berrou alguns palavrões. O marido a conteve e solicitou ao médico a apresentação de diagnóstico. O médico leu novamente o histórico da mulher:



- Realmente, disse em tom superior, estava equivocado, entretanto vejo que seu caso é de cirurgia. Cirurgia imediata! Vamos para o centro cirúrgico. Passou os dedos pelo teclado do telefone e em três minutos, diante dos questionamentos e da incredulidade de marido e de esposa, dois enfermeiros apareceram empurrando uma cadeira de rodas.



O marido ameaçou jogar a cadeira em que estava sentado no primeiro que se atravesse a tocar na esposa, falou algumas palavras em hebraico, afastou-se da mesa do médico, aproximou-se da porta, mas a sala estava trancafiada. Rodou a maçaneta mais algumas vezes. Diante do fracasso, deu alguns chutes na porta e, por fim, ensaiou arrombá-la jogando a cadeira no trinco.



Os enfermeiros observavam o casal pacientemente até que o marido arrancou a camisa ruidosamente: gritando e pulando.



- Hum, exclamou o médico. O caso é mais grave do que pensava. Não se trata de clínica, de oncologia, nem de cirurgias. O casal é louco. Caso para a psiquiatria. Será que o convênio de vocês cobre essa modalidade?





*Publicado originalmente na coluna Ficções, Caderno Tem!, do Oeste Notícias (Presidente Prudente – SP) de 17 de dezembro de 2010.

sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

AR CONDICIONADO


 

Roberto e Roberta se casaram pelas afinidades: adoravam guitarra, rock, motocicletas, bicicletas e massas portuguesas. Nos demais assuntos, entravam em acordo, exceto nas compras realizadas por ela ao fim do mês e das saídas noturnas de quarta-feira quando ele se encontrava com os amigos, jogava bola e terminava a noite numa choperia pouco movimentada num desses bairros mortos.



Roberto e Roberta viviam discretamente numa casa financiada e as motos – cada um tinha a sua – também beiravam os juros. Por essa razão, Roberto e Roberta guerreavam nos assuntos financeiros imprevisíveis. Assim ocorreu numa noite de domingo ao saírem da igreja: um carro derrubara a moto, arrebentara o espelho, amassara o tanque, quebrara o pedal e danificara o cano.



Outra situação: Roberto descobrira um problema no ouvido. O serviço público falho e o plano de saúde suicida escusaram-se das eventuais despesas com o tratamento e ele, retirando o pouco dinheiro da poupança e emprestando algum recurso do pai, pagou os exames, as consultas e o tratamento que o levavam semanalmente, por um ano e meio, ao centro de referência da capital.



O calor e o frio pareciam insignificantes diante da possibilidade de comprar um ar condicionado para as noites de calor ou, como desejava Roberta, que morara três anos e meio em João Pessoa, para os dias de frio. As conversas em torno da compra do ar condicionado – os ajustes do orçamento, as perspectivas e os desejos consumistas – duraram cinco meses.



Roberta correu à loja que parcelava em vinte e quatro vezes, porém se assustou com os preços e, voando à biblioteca, pegou o classificado dos jornais: oito anúncios ofereciam preços, tamanhos e potências diferentes. Anotou tudo num papel surrupiado do caderno de um estudante que copiava informações de uma enciclopédia desatualizada.



O primeiro, o quarto e o sexto números já tinham vendido os produtos. O segundo não atendeu às chamadas. O terceiro e o quinto cobravam alto, sendo descartados antes mesmo de qualquer negociação. Conversou muito com o sétimo, mas a voz paciente do oitavo convenceu-a de que deveria verificar as condições.



Sem consultar o marido, transferiu ao vendedor sete cheques pré-datados, escreveu o número do telefone e o endereço no verso e saiu, com alguma dificuldade, segurando fios e peças. Roberto surgiu da cozinha, mãos sujas de farinha de trigo e avental manchado de molho. Que raios de receita ensaiava?



Visivelmente desconfortável pela surpresa, ajudou a descarregá-la. Os eletricistas cobravam trezentos reais para uma simples instalação. Acessou uma página da internet e copiou um manual criado a partir das sugestões de internautas.



Leu as diretrizes, identificou os pontos comuns e em três dias – entre arrumar um orifício na parede e providenciar o suporte – abria uma lata de refrigerante para comemorar. Roberta olhava a gambiarra. Desconfiava das habilidades e, para ficar longe de intrigas, ignorou os métodos de ligação elétrica, fios descobertos do lado de fora, caindo das brechas das telhas ou arrastando sutilmente na calçada onde geralmente acumulavam-se pequenas poças ou da torneira mal fechada, ou dos eventuais pingos de chuva.



- Hoje, inauguramos uma nova fase em nossa vida, disse o feliz marido.



Assistiram ao tele-jornal, sintonizaram no canal de esportes de inverno do Canadá, jantaram massa deliciosa, beberam vinho, presente de um amigo. Verificaram se o gato da vizinha não estava atrás do sofá. Finalmente, vestiram os pijamas. Roberto ligou o ar condicionado. Fazia muito barulho, mas cansados e razoavelmente embriagados, Roberto e Roberta deram pouca relevância ao detalhe. Até a explosão.



Roberta gritou desesperada. Roberto levantou num pulo, correu para a tomada. Para aliviar a fumaça intensa, abriu a janela do quarto, da cozinha, do banheiro e, na sala, enquanto retirava o cadeado, olhou abismado para o céu claro.



- Nunca pensei que veria tanta estrela aqui, suspirou, voltando ao quarto para socorrer Roberta enquanto moradores saíam às calçadas em busca de notícias da escuridão repentina.





*Publicado originalmente na Coluna Ficções, Caderno Tem!, do Oeste Notícias (Presidente Prudente – SP) de 10 de dezembro de 2010.

sábado, 4 de dezembro de 2010

UM GRANDE ESCRITOR

Legalidade e legitimidade são dois substantivos caros. Legalidade relaciona-se estritamente a quem possui títulos, certificados, diplomas ou documentos que atestam possível capacidade. Legitimidade remete à habilidade profissional de desempenhar satisfatoriamente uma atividade. Quem tem formação legalmente regulamentada nem sempre desempenha satisfatoriamente uma atividade faltando-lhe, dessa maneira, legitimidade. Da mesma forma, nem todos os que se aventuram em uma atividade têm autorização legal, burocrática ou estatal. Charles Kiefer – ao lado de grandes nomes contemporâneos como Luiz Antônio de Assis Brasil, Deonísio da Silva, Cristóvão Tezza ou Milton Hatoum – reúne legalidade e legitimidade: não apenas analisa, estuda ou critica, mas principalmente produz Literatura.





Autor de dezenas de obras – entre elas romances, contos, crônicas e ensaios – e reconhecido tanto pelos leitores (com expressiva vendagem) quanto pela crítica (considerando o número de prêmios e os estudos universitários sobre sua obra), Kiefer utiliza sua experiência de orientador de oficinas literárias no Rio Grande do Sul em “Para ser um escritor” que, em boa parte, constitui, para quem acompanha regularmente seu blog (www.charleskiefer.blogspot.com), seleção de textos relacionada ao ofício da escrita.





Outros escritores renomados já tinham registrado suas impressões pedagógicas ou pessoais sobre a construção ficcional. Entre os brasileiros, Raimundo Carrero, Nelson de Oliveira e o grande Autran Dourado e, no exterior, Stephen Koch, Marguerite Duras, Schopenhauer, Marquês de Sade, Milan Kundera, David Lodge, Ernesto Sábato e Roland Barthes. Kiefer exterioriza suas concepções, levando o leitor a tomar iniciativas no papel social que evidencia o intelectual diante dos empecilhos e das confusões do cotidiano. O escritor tem a palavra para se manifestar, marcar sua posição e se preparar ao combate. Dessa maneira, o anonimato não caberia aos intelectuais no debate das idéias. Covardia? A Literatura não merece covardes, garante Kiefer em “Eu assino o que escrevo” (p. 112).





O livro não agrupa somente concepções de coragem, mas incentiva o estudo sistemático – não necessariamente metódico – e a valorização dos antecessores. Estudar profundamente é, portanto, compromisso indispensável: “A arte não evolui. Por isso, conhecer profundamente a tradição literária é absolutamente necessário a qualquer escritor, sob pena de se passar pelo ridículo de se reinventar a roda”. (p.46)





O estudo de autores, de obras, de análises que agreguem valores aos diálogos intertextuais e enriqueçam o contexto são passos essenciais para assimilar com maturidade as diretrizes dispostas, como se espera de um livro cujo título insinua o caminho “Para ser escritor”, em vários capítulos. Umas das primeiras dicas alerta sobre a má qualidade de obras, destacando problemas com personagens mal construídas ou estereotipadas, ação lenta e desconexa, diálogos superficiais e inúteis, situações inverossímeis, descrições desnecessárias ou que não interessam à narração, textos inexpressivos ou ausência de sutileza. A cada um dos tópicos, Kiefer discorre sobre pontos essenciais que, na prática, auxiliam o bom leitor a analisar com mais capacidade o que descodifica e garante ao aspirante de escritor um roteiro bem estruturado na concepção de suas criações (p. 34-37).





A busca da perfeição também se manifesta no levíssimo “Quatro mundos da criação” em que se estabelece a gradação pragmática e didática no ensaio, na tentativa, no esboço arquitetônico da obra de arte. O discernimento e a conceituação de gêneros narrativos são expostos, discutidos e singularizados como no caso de “É conto ou crônica?” em que, nas primeiras linhas, discorda do poeta Mário de Andrade para quem a definição de conto ou crônica se daria pela escolha em enquadrá-la – sem mais questões estéticas – em um ou outro gênero.





“Para ser escritor” é, no mínimo, um manual indispensável para os que desejam se tornar autores, narradores, ensaístas, dramaturgos, poetas: didático, pragmático e fluido sem, no entanto perder sua capacidade de teorização e de espanto aristotélico.



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Para ser escritor (COMPRE AQUI)

Charles Kiefer – Leya – 160 p. – R$ 29,90





*Publicado originalmente na coluna Ficções, caderno Tem!, do Oeste Notícias (Presidente Prudente – SP) de 3 de dezembro de 2010.

sábado, 27 de novembro de 2010

CONTOS DO JAPIM

Logo na orelha, o autor nos oferece a explicação de “Contos do Japim”, apontando a escolha do título em homenagem ao pássaro, preto com detalhes amarelados, que imita outras aves. O japim – transposto comparativamente à dupla qualidade de autor e de narrador – oferece o mapeamento de suas influências literárias, destacando o amálgama entre estilos diferentes que se complementam, seguem a mesma tradição ou antagonizam.



“Contos do Japim” aborda temas como morte, status, movimento e permanência, polissemia dos objetos sociais.



Uma dessas primeiras constatações transcorre em “O crime de batina”, cujo enredo – sobre a morte de um padre promíscuo que mantinha relações sexuais com travestis e prostituas – concentra-se em temas como a busca da felicidade e do hedonismo, transitando pelo desespero humano. O padre confunde felicidade e hedonismo. O desejo intricado o faz praticar o hedonismo na sua acepção mais ampla, manter sentimentos amorosos e integrar classificados eróticos. No entanto, a ausência de discernimento compromete a percepção na medida em que, na prática hedonista, distancia-se do conceito epicurista de felicidade.



O crime do título inicialmente nos remete ao assassinato do padre. Contudo, o trabalho de dois policiais – um investigador mais novo e um investigador mais velho – junta as peças de um desenho esboçado em informações esparsas e alinha pistas enigmáticas de fé, religião, luxúria, dúvidas, arrependimentos e remorsos: o padre assassinara a prostituta com quem mantinha uma espécie de fidelidade sexual e a quem engravidara. O motivo da morte não se resume à gravidez, mas à descoberta da infecção de Aids, provavelmente transmitida ao embrião. Embora ambos os policiais dediquem-se ao caso, a resposta ao mistério surge da persistência intelectual do investigador mais novo que, num trabalho pouco dedutivo e mais voltado à sorte, observada nos sonhos que esclarecem pontos controversos do diário do clérigo, espelha as artimanhas de Maigret, famoso detetive de Georges Simenon.



“Trilogia” exige mais habilidade do leitor: intertextualidade e contextualização são imprescindíveis. O enredo aflui para três personagens, homens dispersos em tempos diferentes, mas reunidos pela busca de esclarecimento de uma dicotomia: Coliseu e Cristianismo. Jogado à arena do Coliseu como condenação ao fato de se declarar cristão e de se opor à abjuração religiosa, Benedict, o primeiro personagem, reconhece, durante o entrevero a caminho da morte, um senador que resgatou sua família anos antes e dele recebe instruções sobre um artifício para escapar da fera devoradora de homens. Quando se encontra frente a frente com o verdugo, ajoelha-se e reza.



Se Benedict vive diretamente a ação, José, o segundo personagem, combatente da Segunda Guerra Mundial, registra as impressões do conflito em uma espécie de diário, encontrado tempos depois. O interessante na relação desses dois personagens – separados por mais de mil anos – reside na ambiência tanto da antiguidade quanto da contemporaneidade: beligerância, medo, imediatismo. José relembra parte das cenas protagonizadas por Benedict deixando nas entrelinhas uma probabilidade de ser o próprio Benedict. Por fim, o jornalista Heitor viaja para entrevistar uma professora brasileira que leciona na Itália, espaço onde transcorrem os enredos, obviamente em tempos diferentes. Heitor gosta de Literatura e encanta-se com o quadro de dois cristãos, fugitivos do Coliseu.



A intertextualidade e a contextualização, mencionadas anteriormente, são indispensáveis para compreender “Trilogia”, uma elaborada produção que dialoga com o sonhador José, personagem bíblico, vendido pelos irmãos, admirado pelo Faraó e profeta das sete grandes pragas do Egito. A ação de Benedict, o sonho de José (que, como o personagem bíblico, se sobressai pelo dom onírico) e a rememoração de Heitor precisam da contextualização do receptor como, cabe acrescentar, praticou Moacyr Scliar em mais de um de seus trabalhos.



Além de “O crime de batina” e “Trilogia”, “Contos do Japim” agrupa mais seis textos que, em razão do curto espaço, podem e devem ser analisados pelos leitores. Os próximos trabalhos de Ramon Barbosa Franco serão acompanhados em tentativas de se estabelecer alguns parâmetros Literários, consolidações e mudanças ou manutenções estilísticas.



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Contos do Japim

Ramon Barbosa Franco – Carlini e Caniato Editorial – 88 p. – R$ 23,90







*Publicado originalmente na coluna Ficções, no caderno Tem!, do Oeste Notícias (Presidente Prudente – SP) de 26 de novembro de 2010.

sábado, 20 de novembro de 2010

HOMÔNIMO

O professor de língua portuguesa chegou ao caixa do supermercado. Colocou na esteira os pacotes de leite em pó, pães, queijo, presunto, uvas, mamão e duas garrafas de refrigerante. Uma senhora que estava atrás abriu bem os olhos, mas disfarçou a surpresa ao presenciar o diálogo:



- Bom dia, Luis.



- Bom dia, senhor.



- Sabia que somos homônimos?



Conhecida na vizinhança pelas informações privilegiadas sobre a vida dos outros, horrorizou-se ao testemunhar o pai de família em cenas estranhas, à saída do supermercado, em plena luz do dia. Como tinha coragem de encontrar alguém e, ao primeiro contato, já se declarar homônimo?



- Pois é, minha filha, dizia enquanto acomodava as compras na geladeira, no armário e na prateleira de frutas, conversando com a vizinha que deixara a mangueira escorrendo na calçada e a vassoura caída quando a outra dissera que tinha uma bomba para contar.



- Mas eu não acredito. Luis? O professor de português? Você tem certeza?



- Certeza absoluta, como dois e dois são quatro. Estava atrás dele quando deu bom dia para o rapazinho e disse que era homônimo. Eu ouvi. Ouvi quando disse homônimo!



- Meu Deus do céu! Espantou-se a outra, levantando-se e lembrando-se da água escorrendo na calçada. Um homem tão bonito, tão forte, tão inteligente. A mulher ganhou criança não faz nem três meses. Se ainda fosse com outra mulher... Não seria uma coisa certa, mas pelo menos a gente entendia.



Pegou a mangueira do chão, viu o desperdício e entraria em casa para desligar a torneira. Entretanto, viu dona Maria das Dores atravessando a esquina, gritou, berrou, pulou, acenou e, quando finalmente se fez perceber, largou novamente a mangueira, correu o quanto pode, segurando o braço da companheira octogenária:



- A senhora já sabe da última? Sabe o Luis, professor de português?



Um pouco antes do fim da tarde, o professor decidiu aproveitar o calor: vestiu uma bermuda vermelha confortável, calçou os tênis brancos e meias vermelhas, escolheu uma camiseta regata velha que, vista ao espelho, parecia apertar a cintura, o tronco e os ombros. A esposa questionou se sairia daquele jeito. As pessoas falariam mal, acrescentou, fechando cautelosamente a porta do quarto do filho que acabara de dormir.



- Não se preocupe. Ninguém mais repara nisso. Vou apenas dar uma volta no parque. Quando voltar, podemos ir ao cinema e depois jantar. Sua irmã não vem para cá esta noite? Ela fica com o menino! Para que servem as cunhadas, as avós e os parentes?



Parou num banco do parque para apertar o cadarço. Um casal cochichava e olhava com algum pudor para o atleta. Ao dar a volta na pequena lagoa, duas alunas viraram as costas. Na subida da árvore velha, uma senhora, que o conhecia desde os tempos de estudante de letras na universidade local, perguntou se não tinha vergonha na cara. Um amigo, policial aposentado e atualmente dono de uma empresa de segurança particular, quis saber se não tinha outra roupa para vestir.



Da saída do parque até chegar em casa, os olhares o constrangiam, os cochichos o incomodavam e uma criança o denunciou: - Ele vem vindo! Ele vem vindo! Bastou o alvoroço da menina para as janelas de sua casa e das vizinhas lotarem de curiosas que, descarada ou discretamente, riam da roupa tão estranha e tão apertada, ora baixando os olhos, ora apontando euforicamente quem, em menos de um dia, tornara-se o personagem mais comentado das redondezas.



Comunicou à mulher: melhor ficarem no recanto do lar. Uma deselegância largarem o menino com a cunhada que talvez quisesse descansar. Assistiriam a algum filme na televisão, pediriam uma pizza, beberiam um vinho tinto seco, um xícara de café. A esposa não estranhou o comportamento nem perguntou por que jogava a velha blusa regata no lixo do banheiro. Metera-se na cozinha verificando o prazo de validade de alguns produtos quando a irmã entrou, olhos vermelhos.



- Com essa força, essa mão, esse peito, esse sorriso, essas pernas grossas que deixam a gente desconcentrada! Ai, minha irmã, não esperava que Luis fosse homônimo!





*Publicado originalmente na coluna Ficções, Caderno Tem!, do Oeste Notícias (Presidente Prudente – SP) de 19 de novembro de 2010.

sábado, 13 de novembro de 2010

CACHORRÃO

A advogada empilhou os processos no balcão, puxou o telefone móvel e, enquanto ligava ao escritório para orientar a secretária sobre um cliente que a procuraria por volta das três e meia, sinalizou a devolução da papelada. A mulher gorda e simpática jogou a carta oficial no teclado do computador do colega, pegou uma caneta azul, mão sobre os processos:



- A senhora vai devolver tudo ou só alguns?



Concluiu a orientação, jogou o telefone dentro da bolsa, puxou uma folha:



- Devolvo todos, mas gostaria de saber se os processos de divórcio da juíza mal-amada já estão disponíveis.



A atendente e a advogada se entreolharam, confirmando implicitamente o sucesso da alcunha da magistrada da octogésima oitava vara especial.



- Você é essa advogada? Lidiane Cachorrão?



- Sim, sou eu, respondeu alegre, equilibrando-se melhor na sandália de onze centímetros, ajeitando o cabelo e sorrindo ainda mais depois de reconhecida. A fama batia à porta e dava-lhe os primeiros resultados práticos.



- Você é parente do Cachorrão? A funcionária curiosa indagou, esperando uma resposta da advogada cujos louros da fama escapavam pelas brechas do ar condicionado. Como geralmente a comparassem ao advogado Bento Cachorrão, que militava há mais de trinta anos em Maringá, interior do Paraná, desfez o sorriso e, tentando manter alguma simpatia nos olhos altivos: – Geralmente me perguntam sobre isso, mas eu não sou parente dele, replicou enquanto voltava a se comunicar com a secretária.



A atendente entrou no imenso arquivo. A advogada desligou o telefone a tempo de presenciar as estantes inclinarem-se, um estrondo ecoar seguido de grossa nuvem de poeira. Transeuntes, advogados, estagiários, promotores e partes pensavam tratar-se de um atentado. Uma senhora de idade avançada, carregada pela nora em uma cadeira de rodas, reuniu forças e se pôs a correr, escondendo-se atrás do quadro comprado de um artista local.



- Uma bagunça danada, retomou a escrevente, carregando cinco processos em que a advogada figurava como responsável. Então você não é parente do Cachorrão? De vez em quando eu o vejo andando por aí. Outro dia mesmo o vi numa bermudinha! Naquela hora até me senti mulher.



A advogada ria, imaginando que Bento Cachorrão aparecesse uma ou duas vezes ao semestre para desenrolar algum processo complicado. Maringá ficava quase a trezentos quilômetros. Percorreria trezentos quilômetros para andar de bermudinhas?



- Aí, eu não me controlei. Cheguei perto dele, mas quando eu ia dar uma beliscada naquele bumbunzinho, um amigo dele se aproximou e fiquei com vergonha. Um homem daquele... De noite, quando fui dormir, tive cada sonho que nem posso contar, confidenciava a escrevente, baixando o tom de voz para esconder a informação e estabelecer grau de intimidade com a advogada que, atenta aos despachos, pensava em assuntos estranhos aos relatos eróticos.



- Levo esses dois, pediu depois de guardar a agenda e verificar se a secretária tinha telefonado mais uma vez. Para não se mostrar indiferente, contasse um pouco mais.



- Então menina, esse Cachorrão é o homem dos meus sonhos. Outro dia imaginei que tínhamos viajado para Petrópolis. Ele me olhava, recitava uns poemas do Bocage, parava o carro... Outro sonho, me dava aulas de natação. A gente alongava, caminhava em volta da piscina para aquecer, pulava e tchibum! Já estou ficando com calor só de pensar...



- Mas, interrompeu a advogada, de que Cachorrão você está falando? Do advogado de Maringá?



- Advogado de Maringá? Aquele traste, danoso e medonho? Imagina! Eu estou falando daquele metro e oitenta de maravilha que é o Cachorrão, professor de natação da Escola Sete Quedas. Aquilo é homem! Homem para mais de metro!



- Ah, sim, confirmou a advogada. Esse Cachorrão, professor de natação da Sete Quedas eu conheço.



- Ele não é demais? Não dá vontade de sair rolando com ele pela grama?



- Se dá, finalizou a advogada, assinando o documento de retirada dos processos, correndo o zíper da bolsa e voltando os olhos para a escrevente: - Faço isso todo dia. Esse Cachorrão é meu marido!



*Publicado originalmente na coluna Ficções, no Caderno Tem!, do Oeste Notícias (Presidente Prudente – SP) de 12 de novembro de 2010.