sábado, 18 de dezembro de 2010

MÉDICO NOTA 10

O casal já folheara a quarta revista velha do consultório. Impaciente, a mulher encostou na mesa da atendente e perguntou quanto tempo ainda demoraria. Mais de hora e meia esperando. Para que pagavam convênio médico tão caro? Para enfrentar os mesmos transtornos da caótica saúde pública? Seriam chamados em breve. Trinta e sete minutos depois, mulher e marido entravam no consultório do clínico geral. Transtornada pela contrariedade da espera prolongada. O marido advertira que não fossem àquele inferno.



- Bom dia, disse o médico sem parar de escrever no receituário e sem levantar os olhos. Em que posso ajudá-los?



Sem convite, a mulher sentou-se apontando a cadeira disponível para o marido. Algumas dores do lado esquerdo do corpo quando caminhava por muito tempo, corria duas vezes por semana ou nadava na piscina do clube. O marido perguntou sobre dores nas costas que sentia há alguns meses.



Ele precisava de um oncologista e ela de meio litro de suco de maracujá com bastante açúcar. A mulher arregalou os olhos:



- Doutor, meu marido não precisa de um oncologista. Oncologista não é médico de câncer? Ele não tem câncer.



- Ah, não? Interrompeu o médico, olhando pela primeira vez o casal sentado. Então o senhor deve procurar um médico de coluna que é o... Esqueci o nome, mas a atendente procura no nosso catálogo e informa corretamente para vocês. É só isso?



- Claro que não, doutor, respondeu a esposa. Vim reclamar de dores do lado esquerdo do corpo, mas o senhor disse para tomar suco de maracujá com bastante açúcar.



- O suco vai ajudá-la a relaxar e o açúcar manterá sua pressão baixa de modo que a senhora...



- Vou morrer, doutor. De modo que vou morrer. Não sei se leu minha ficha, mas sou diabética. Se tomo açúcar todos os dias, vou morrer.



- Realmente, não pode tomar açúcar. Mas a senhora tem certeza de que é diabética? Desde quando tem essa informação? Já fez exames?



A mulher levantou-se bufando, o marido puxou-a de volta:



- Se tenho certeza, doutor? Tenho trinta e dois anos e desde os dezenove controlo o açúcar. O senhor pergunta se tenho certeza?



- Talvez seu problema seja no rim esquerdo. A senhora pode fazer um exame. Verificaremos o grau de funcionamento dele. Enquanto isso, alimente-se bem, faça bastante churrasco no fim de semana e não se esqueça de me convidar...



- Para nosso velório, doutor? O colesterol dele anda acima do normal há três meses, estamos numa luta para regularizar e nós dois somos hipertensos. Não comemos sal! Como fazer churrasco sem sal, sem aumentar o colesterol e sem risco de enfarte?



O médico cruzou os braços, disse três ou quatro palavras, diagnosticou as dores do lado esquerdo: dengue. O marido olhou em volta, procurando alguma câmera escondida. Uma piada dessas só poderia ser de um desses programas de televisão. Onde estavam as câmeras? Mais de uma câmera! Certamente.



A mulher esbravejou qualquer coisa, gesticulou agressivamente, berrou alguns palavrões. O marido a conteve e solicitou ao médico a apresentação de diagnóstico. O médico leu novamente o histórico da mulher:



- Realmente, disse em tom superior, estava equivocado, entretanto vejo que seu caso é de cirurgia. Cirurgia imediata! Vamos para o centro cirúrgico. Passou os dedos pelo teclado do telefone e em três minutos, diante dos questionamentos e da incredulidade de marido e de esposa, dois enfermeiros apareceram empurrando uma cadeira de rodas.



O marido ameaçou jogar a cadeira em que estava sentado no primeiro que se atravesse a tocar na esposa, falou algumas palavras em hebraico, afastou-se da mesa do médico, aproximou-se da porta, mas a sala estava trancafiada. Rodou a maçaneta mais algumas vezes. Diante do fracasso, deu alguns chutes na porta e, por fim, ensaiou arrombá-la jogando a cadeira no trinco.



Os enfermeiros observavam o casal pacientemente até que o marido arrancou a camisa ruidosamente: gritando e pulando.



- Hum, exclamou o médico. O caso é mais grave do que pensava. Não se trata de clínica, de oncologia, nem de cirurgias. O casal é louco. Caso para a psiquiatria. Será que o convênio de vocês cobre essa modalidade?





*Publicado originalmente na coluna Ficções, Caderno Tem!, do Oeste Notícias (Presidente Prudente – SP) de 17 de dezembro de 2010.

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