Homem gordo bebendo café sem açúcar na padaria no meio da tarde, menina escrevendo cartas de amor com erros de concordância ou menino caindo da bicicleta e abrindo berreiro, confissões de amigas no banco de trás do ônibus ou na fila calorenta e impaciente do supermercado, débito cobrado errado, velha atravessando a rua em passo acelerado e temerosa se o carro não a derrubará antes de chegar à metade do trajeto planejado, cheiros de rosas no meio urbano, odores de podridão na zona rural, motos barulhentas, mulher carregando flores, pai gritando com filhos, namorada indignada com os comportamentos do namorado...
Quase tudo – ou tudo? – constitui matéria de trabalho para os cronistas cujo time conta com nomes da magnitude de Moacyr Scliar, Luis Fernando Veríssimo, Paulo Mendes Campos, Fernando Sabino, Rony Farto Pereira, José Lins do Rego, Sergio Faraco, Mario Quintana, Walter Galvani, Nelson Rodrigues...
Moacyr Scliar publicava às segundas-feiras uma crônica ficcional baseada em reportagens da semana anterior lançadas na “Folha de São Paulo”. No “Zero Hora”, sediado em Porto Alegre (RS) e circulando em parte da região Sul, aperfeiçoava seu olhar na interpretação dos assuntos reais em linhas recheadas de amenidades.
Luis Fernando Veríssimo escreveu na “Folha de São Paulo” até se transferir para o concorrente “O Estado de São Paulo”. Algumas de suas crônicas alcançaram a eternidade da palavra – quem disse que a crônica não poderia ser eterna? – em dezenas de títulos, disputados a preço de ouro pelas editoras.
Paulo Mendes Campos transfigura os assuntos inesperados: nova perspectiva sobre o futebol – comentando sobre o dia em que o Flamengo salvou sua pele em terras estrangeiras – ou impondo questionamentos filosóficos sobre a propriedade ou a liberdade – ao reproduzir o diálogo entre um motorista roubando milho e o dono da plantação.
A Fernando Sabino cabe a descrição da intimidade numa fluência que nos solidariza com seus problemas de compra e entrega de tapetes na Inglaterra ou nos Estados Unidos ou com os apuros durante as férias da empregada.
José Lins do Rego abordou os temas do esporte – especialmente o Flamengo, seu time de coração. Walter Galvani aproximou-se das imagens de Porto Alegre e, das experiências, publicou “Crônica – o vôo da palavra”, que me foi presenteado por Valesca de Assis. Rony Farto Pereira, especialista em lingüística, autor de livro composto de devaneios urbanos transcritos nas páginas da imprensa regional, capta as sutilezas das espécies de amor, realçando sua capacidade de jogar a segundo plano a temporalidade e a relevância do espaço.
O domínio da língua e da linguagem consagra o estilo de Nelson Rodrigues reconhecido desde as primeiras linhas – algo entre a objetividade contida de Machado de Assis e a poeticidade da prosa econômica de Dalton Trevisan. Seus assuntos redimensionam as relações de desejos e de aversão dos discursos e práticas entre público e íntimo.
A crônica abriga carpinteiros de outras esferas que comprovam a versatilidade do gênero. O contista gaúcho Sergio Faraco – autor de vasta obra em que se incluem memórias, reconstruções historiográficas, antologias e ensaios – passeia nos principais jornais e reuniu sua produção em “Viva o Alegrete!”, paradigma indispensável nas prateleiras dos bons cronistas.
Igualmente vindo do Rio Grande do Sul, o poeta Mario Quintana me surpreendeu com a linguagem fortemente simbolista. Confesso que os primeiros poemas, nas antologias ou nos livros escolares, entediavam-me ao extremo. Que história era aquela de girassol, de menino doente e ferreiro trabalhando pelas manhãs? Minha biblioteca se fecharia para suas obras até que a Globo, lançando versos, aforismos e crônicas, fez-me observar o impacto do fino retrato pela lente da sensibilidade. Admirei o poeta gostando inicialmente do cronista.
Qualquer assunto é matéria-prima para quem se dedica à crônica. Poeta, contista, romancista, ensaísta, aspirante a escritor ou escritor profissional talvez se inspirem naquilo que é indispensável. Livros, teorias, erudição complexa? A vida é indispensável. Todo o resto é acessório.
*Publicado originalmente na coluna Ficções, caderno Tem!, do Oeste Notícias (Presidente Prudente – SP) de 24 de junho de 2011.