Ao som de “La cumparsita”
Após viajar a Buenos Aires e transitar por suas ruas cosmopolitas se chega a algumas conclusões: os argentinos lêem mais do que os brasileiros, os cafés são confortáveis e razoavelmente limpos, as mulheres maduras são incomparáveis.
Minha namorada e eu viajamos para a terra de Borges e Cortázar depois de passarmos o ano inteiro economizando em lanches, restaurantes, filmes na locadora e no cinema, teatro, Coca-Cola, chocolates. Logo que desembarcamos, a desvalorização do peso argentino nos recepcionou. O dinheiro brasileiro valia muito mais. Chegamos a almoçar oito vezes em um dia e andávamos de táxi para qualquer lugar.
O primeiro impacto que tivemos: a glorificação do livro. Visitamos a Calle Florida – espécie de rua de comércio em moldes proporcionais à 25 de março em São Paulo – e verificamos, em meio ao turbilhão de transeuntes e consumidores, mais de quinze grandes livrarias equipadas com milhares de obras. Numa tarde, depois da visita ao zoológico, encontramos um camelódromo. Mais de cinquenta barracas vendendo... Sim. Cinquenta barracas vendendo livros!
A leitura tem importante papel na cultura argentina. Espantamo-nos com pessoas tomando suco ou comendo pizza e, acreditem, lendo.
Se o primeiro ponto positivo se constitui no incentivo geral da leitura, o segundo se consolida pelo conforto dos cafés. Em Buenos Aires, os bares que encontramos por aqui são substituídos por cafés. Cafés a que podemos levar nossas famílias, onde podemos escrever crônicas, resenhar livros, jogar xadrez, fazer o orçamento mensal, assistir a algum programa televisivo ou simplesmente ler. Faço votos de que nunca precise ir ao banheiro de um café argentino: os banheiros argentinos e os brasileiros estão em pé de igualdade!
Entramos em um café de San Telmo, bairro em que nos hospedáramos, para jantar e, assim que nos acomodamos, perturbei-me com duas senhoras que, pelos meus cálculos, sentavam sempre à sua mesa naquele horário. Liam jornais e revistas enquanto bebericavam chá. Depois, trocavam os periódicos e se deliciavam com o que a companheira acabara de ler. Por fim, sacavam seus livros.
Boa parcela dos freqüentadores dos cafés ocupava o tempo lendo, escrevendo, lendo novamente. Especialmente as senhoras para quem, provavelmente, o poeta Affonso Romano de Sant’Anna escrevera “A mulher madura”, crônica interpretada pelo ator Paulo Autran.
Quando retornamos, entristeci-me. Dificilmente conseguiremos níveis de leitura próximos dos argentinos. Jamais disporemos de cafés confortáveis para leituras e conversas civilizadas. Nunca teremos o prazer de testemunhar novamente a beleza das mulheres maduras trajando-se digna, fabulosa, elegante, maravilhosa e belamente. As mulheres argentinas de meia-idade são incomparáveis.
Pensava nisso dias atrás quando, preparando-me para pegar o ônibus, vislumbrei uma professora experiente atravessar o percurso que a separava do veículo. Os curtos cabelos grisalhos transmitiam a força da jovialidade de seus passos coadunados aos trejeitos da roupa simples de intensa e profunda catarse estética: o colar repousando harmoniosamente sobre a camisa florida dentro da qual uma camiseta branca compunha o figurino completado pelas calças de tons suaves e sandálias que apenas as princesas de cenários oníricos usam no passeio majestoso da beleza, lançada aos cinco ventos dos mares da fantasia.
O êxtase do instante invadiu o ambiente. Os carros ultrapassavam os limites de velocidade urbana em silêncio inconcebível, o Sol escondia-se nas nuvens para suavizar o caminho assim como os ventos do verão ou dos prenúncios do outono envolviam-na em ritmos imperceptíveis.
Até os passarinhos pararam o trabalho rotineiro da despedida da tarde e das canções crepusculares para contemplar dos fios, dos galhos, dos telhados e dos céus, o momento mágico da música experimentada pela conjunção dos sentidos que durou exatamente os treze passos para entrar no transporte e, como numa cena de filme de Spielberg, o real desmanchar as alegorias simples, inefáveis e eternas das visões que, como sugeria Nietzsche, nos atravessam inexplicavelmente.
Quando ocupei meu lugar ao meio do ônibus, fixei-me ainda nos cabelos grisalhos levemente inclinados sobre um livro. Concluí que as mulheres argentinas de meia-idade são leitoras ávidas, charmosas e elegantes, mas que os anjos ouviram os murmúrios e me brindaram com o testemunho singular da transcendência feminina simbolizada na professora universitária, naturalmente bela como belos são os sentimentos indescritíveis, elegantemente maravilhosa assim como maravilhosas são as figuras sem desenhos, brasileiramente inigualável como todas as argentinas adorariam ser.
*Publicado originalmente na coluna Ficções, caderno TEM!, do Oeste Notícias (Presidente Prudente – SP) de 23 de abril de 2010.
terça-feira, 27 de abril de 2010
terça-feira, 20 de abril de 2010
BARÃO DE ALCAPARRAS
Leu a reportagem no jornal de domingo falando de Monteiro Lobato. Decidiu pertencer ao círculo intelectual da cidade e, ao mesmo tempo, desenvolveria atividades agrícolas, artísticas, científicas, industriais e de prestação de serviços.
- Olha isso aqui, mãe, falava destacando a página no centro da qual uma fotografia em preto e branco ilustrava a matéria. O cara foi preso, quase expulso do país e mesmo assim insistiu. Trabalhou de promotor de justiça, fazendeiro, editor, escritor, tradutor, jornalista, descobriu poços de petróleo, viajou meio mundo e se correspondeu com os maiores intelectuais da época. Esse Monteiro Lobato tem história.
- Se tem, complementava a mãe, displicente, procurando algum utensílio na cozinha bagunçada.
Durante a semana entrou nas páginas de busca da internet e quanto mais reconstituía a vida do escritor infantil, mais se encantava com o sonho de cravar o nome no imaginário regional. Em quarenta anos seria lembrado pelos grandes empreendimentos. À noite, enquanto mudava os canais da televisão, pensava nas atividades econômicas em que arriscaria seu parco dinheiro.
- Jornal? Não. Aqui tem muitos jornais. Revista também não tem saída. Supermercado, farmácia, posto de combustíveis? Corretora de seguros, restaurante?
Talvez comprar alguns terrenos e construir imóveis populares, mas lembrou das altas taxas de inadimplência e da dor de cabeça em tribunais, cartórios, delegacias. Se adquirisse uma franquia? Escolas de inglês estavam fora de moda. Espanhol ninguém estudava. Investir em livrarias? Aventura arriscada. Se fundasse uma gráfica? Que tal convites de casamento?
Embora se esforçasse em traçar planos, as idéias sumiam ou se mostravam inconsistentes. O lampejo veio de uma prima bióloga. Desde a graduação estudava a função das alcaparras e, agora, finalizando o doutorado, precisava de um local para plantá-las. Ele nunca ouvira falar do condimento. Leu algumas informações da força da planta e da capacidade de reprodução na idade madura.
- Depois de plantadas, ensinou a prima, as mudas levam de quinze a cinqüenta dias para florescer. Na idade adulta, começam a produzir de verdade e dão um bom dinheiro. É muito fácil exportá-las. A Europa inteira compra esse produto, principalmente a Itália, onde se faz aperitivo.
Amanheceu no sítio da família – o avô possuía uma fazenda enorme, dividida posteriormente entre os filhos – pediu aos três empregados que derrubassem os pés de frutas, colhessem a soja e o milho do jeito que estavam. Os empregados telefonaram para a mãe. A soja e o milho se perderiam.
- Vou plantar alcaparras.
- Alca o quê?
- É uma frutinha. Vai vender para Europa. Vai vender muito mais do que soja e milho. Confie em mim. Daqui a algum tempo, quando a senhora fizer caminhada no Parque do Povo, as pessoas vão apontar e dizer: - Aquela é a mãe do Barão de Alcaparras.
A mãe endossou as ordens do filho. Árvores frutíferas, soja e milho cederam espaço às plantinhas sulcadas durante o fim de semana com o auxílio dos empregados, de alguns amigos e de duas dúzias de trabalhadores contratados especificamente para tal fim.
Em quinze dias, as mudas romperam a terra e aos quarenta atingiram perto de um metro. Tamanho ideal. A cotação do dólar favorecia a venda nas próximas semanas. Itália, Holanda, Dinamarca e Grécia seriam os destinos iniciais. Após a primeira colheita, pagar os empréstimos em três bancos, devolver o dinheiro de um tio e de um amigo, recuperar o carro deixado empenhado em um estacionamento e quitar as prestações de oito cartões de crédito, que juntos ultrapassavam trinta mil reais.
- Barão de Alcaparras. Acho que vou mandar colocar uma placa na frente de casa: Aqui mora o Barão de Alcaparras. Os amigos, sentados num bar, riram, brindaram e secaram os copos.
Passaram-se cinco meses. Angustiado, telefonou para a prima. Onde estavam as frutas?
- Aparecem na idade adulta. As alcaparras ficam adultas depois de sete anos. Até lá, cuidado com excesso de sol, falta de chuva, temperaturas elevadas, pragas e manuseio de agrotóxicos...
*Publicado originalmente na coluna Ficções, caderno Tem!, do Oeste Notícias (Presidente Prudente – SP) de 16 de abril de 2010.
- Olha isso aqui, mãe, falava destacando a página no centro da qual uma fotografia em preto e branco ilustrava a matéria. O cara foi preso, quase expulso do país e mesmo assim insistiu. Trabalhou de promotor de justiça, fazendeiro, editor, escritor, tradutor, jornalista, descobriu poços de petróleo, viajou meio mundo e se correspondeu com os maiores intelectuais da época. Esse Monteiro Lobato tem história.
- Se tem, complementava a mãe, displicente, procurando algum utensílio na cozinha bagunçada.
Durante a semana entrou nas páginas de busca da internet e quanto mais reconstituía a vida do escritor infantil, mais se encantava com o sonho de cravar o nome no imaginário regional. Em quarenta anos seria lembrado pelos grandes empreendimentos. À noite, enquanto mudava os canais da televisão, pensava nas atividades econômicas em que arriscaria seu parco dinheiro.
- Jornal? Não. Aqui tem muitos jornais. Revista também não tem saída. Supermercado, farmácia, posto de combustíveis? Corretora de seguros, restaurante?
Talvez comprar alguns terrenos e construir imóveis populares, mas lembrou das altas taxas de inadimplência e da dor de cabeça em tribunais, cartórios, delegacias. Se adquirisse uma franquia? Escolas de inglês estavam fora de moda. Espanhol ninguém estudava. Investir em livrarias? Aventura arriscada. Se fundasse uma gráfica? Que tal convites de casamento?
Embora se esforçasse em traçar planos, as idéias sumiam ou se mostravam inconsistentes. O lampejo veio de uma prima bióloga. Desde a graduação estudava a função das alcaparras e, agora, finalizando o doutorado, precisava de um local para plantá-las. Ele nunca ouvira falar do condimento. Leu algumas informações da força da planta e da capacidade de reprodução na idade madura.
- Depois de plantadas, ensinou a prima, as mudas levam de quinze a cinqüenta dias para florescer. Na idade adulta, começam a produzir de verdade e dão um bom dinheiro. É muito fácil exportá-las. A Europa inteira compra esse produto, principalmente a Itália, onde se faz aperitivo.
Amanheceu no sítio da família – o avô possuía uma fazenda enorme, dividida posteriormente entre os filhos – pediu aos três empregados que derrubassem os pés de frutas, colhessem a soja e o milho do jeito que estavam. Os empregados telefonaram para a mãe. A soja e o milho se perderiam.
- Vou plantar alcaparras.
- Alca o quê?
- É uma frutinha. Vai vender para Europa. Vai vender muito mais do que soja e milho. Confie em mim. Daqui a algum tempo, quando a senhora fizer caminhada no Parque do Povo, as pessoas vão apontar e dizer: - Aquela é a mãe do Barão de Alcaparras.
A mãe endossou as ordens do filho. Árvores frutíferas, soja e milho cederam espaço às plantinhas sulcadas durante o fim de semana com o auxílio dos empregados, de alguns amigos e de duas dúzias de trabalhadores contratados especificamente para tal fim.
Em quinze dias, as mudas romperam a terra e aos quarenta atingiram perto de um metro. Tamanho ideal. A cotação do dólar favorecia a venda nas próximas semanas. Itália, Holanda, Dinamarca e Grécia seriam os destinos iniciais. Após a primeira colheita, pagar os empréstimos em três bancos, devolver o dinheiro de um tio e de um amigo, recuperar o carro deixado empenhado em um estacionamento e quitar as prestações de oito cartões de crédito, que juntos ultrapassavam trinta mil reais.
- Barão de Alcaparras. Acho que vou mandar colocar uma placa na frente de casa: Aqui mora o Barão de Alcaparras. Os amigos, sentados num bar, riram, brindaram e secaram os copos.
Passaram-se cinco meses. Angustiado, telefonou para a prima. Onde estavam as frutas?
- Aparecem na idade adulta. As alcaparras ficam adultas depois de sete anos. Até lá, cuidado com excesso de sol, falta de chuva, temperaturas elevadas, pragas e manuseio de agrotóxicos...
*Publicado originalmente na coluna Ficções, caderno Tem!, do Oeste Notícias (Presidente Prudente – SP) de 16 de abril de 2010.
segunda-feira, 12 de abril de 2010
CLIENTE BANCÁRIO
Banco na hora do almoço: depósito para o filho universitário em Curitiba. As intensas chuvas da entrada do verão causaram prejuízos e aumentaram significativamente o condomínio. As águas inundaram o estacionamento e estouraram as tubulações. O seguro pagaria os estragos dos veículos, mas as tubulações e os trabalhos a elas inerentes correriam por conta dos moradores.
A estagiária o tirou da fila e apontou o caixa eletrônico: depósito sem burocracia. Preencheu sem dificuldades o canhoto do envelope, digitou os dados na máquina, enfiou o invólucro e retirou o comprovante ao fim do qual constavam informações de conservação do documento.
Um bafo demoníaco invadiu as faces assim que pôs o pé esquerdo nos limites da porta da rua. Caminhou esbaforido até o escritório, ligou o condicionador de ar e antes das cinco da tarde a conta de energia elétrica repousou sobre a mesa. Aumento de cinqüenta por cento de consumo. A de casa deveria vir no mesmo patamar. Se continuasse assim, o orçamento estouraria.
Proposta de dormirem de janelas abertas rejeitada pela esposa. Ladrões, falta de segurança, bichos peçonhentos.
- Além do que, garantiu a esposa, janela aberta não significa menos calor. Como sempre, tinha razão.
Jantou e, antes de tomar banho, um lampejo raspou-lhe a memória. Caminhou cinco quadras, destravou a porta automática e notou os condicionadores de ar ligados. Destravou novamente a porta e esperou os minutos finais para as dez. Os caixas eletrônicos se desligaram, mas os condicionadores de ar mantiveram o trabalho intenso. Um auxiliar de escritório, cujo irmão trabalhara como segurança de banco, informava que a ventilação se fazia necessária para não provocar circuitos. Vinte e quatro horas de vento fresco para computadores, máquinas e equipamentos.
Na noite seguinte, entrou no banco faltando cinco minutos para as dez, varreu o ambiente dos caixas eletrônicos, passou um pano umedecido para retirar o excesso de sujeira, estendeu um colchonete e encetou o sono relaxante, interrompido nos primeiros raios quando o vigilante, provavelmente também despertando do sono, estranhou a situação e chamou a polícia.
- Dormiu aqui? Mas, como assim, cidadão?
- Estou pagando muita conta de condicionador de ar. Já que sou cliente do banco, posso usufruir de tudo o que me oferece. Ou há alguma lei que me proíba de dormir aqui?
O policial olhou desconfiado para o colega. O vigilante incomodou-se com a situação, mas não conhecia leis que vedassem os clientes de dormirem nas dependências da agência.
- Além do mais, sou excelente cliente. Tenho pouco dinheiro, mas meus cheques não voltam e tenho uma pancada de títulos de capitalização, fundos de renda fixa e seguros de vida, residencial e automobilístico.
Ao anoitecer, voltou à agência no horário da véspera, acompanhado da esposa e do filho mais novo. Acomodou o colchão de ar em um canto e o do filho em outro. Às cinco e quarenta e cinco o vigilante acordou a família. Enquanto esperava a abertura da porta automática, enfatizava que, além do ar refrigerado, contavam com forte segurança. À noite, voltando ao banco, entregou um pacote de coxinhas e duas latas de Coca-Cola.
O trato de coxinhas e refrigerantes se estenderia longo tempo se o gerente não se inquietasse com pessoas deitadas no escuro. Bateu no vidro dos fundos. Acordou o vigia, assustado com a visita inóspita. Depois de explicações, passou pela porta giratória e, em voz alta, solicitou que deixassem a agência.
- Daqui nós não saímos. Daqui ninguém nos tira.
O gerente silenciou. Telefonou para a polícia. Informado da situação pelos subordinados, o comandante adiantou que não poderia fazer nada. Obtivesse uma ordem judicial que a cumpriria.
Em pouco tempo, dezenas de curiosos se aglomeravam nas portas de vidro da agência no interior da qual o casal ressonava tranquilamente e o filho, aproveitando o grande número de telefones móveis com micro-câmeras, sorria, acenava, fazia presepadas.
De início, os advogados se recusaram ao despejo. Ameaçados de cancelamento de contrato por falta de prestação de serviços, entraram com o pedido de expulsão dos dorminhocos. O gerente ia pessoalmente ao fórum todas as tardes. Um dia o processo estava no protocolo; outro no assistente do diretor do cartório. Um dia, quase chegando às mãos do diretor do cartório; no outro, na mesa do diretor. Depois, o diretor faltou por motivos de doenças, dois feriados prolongados, férias do juiz, atentado contra o prédio, análise do pedido e, finalmente, a almejada ordem de despejo.
Telefonou para a polícia. Esperou das cinco e meia da tarde até dez da noite. Dez e quinze, dez e meia, onze horas, quinze para uma da manhã.
- Mas que raios? Só porque trouxe essa expulsão esse pessoal não vai aparecer?
- Nesse frio? Interveio o vigilante, acho que eles preferem ficar em casa, enrolados num edredom.
*Publicado originalmente na coluna Ficções, caderno Tem!, do Oeste Notícias (Presidente Prudente – SP) de 9 de abril de 2010.
A estagiária o tirou da fila e apontou o caixa eletrônico: depósito sem burocracia. Preencheu sem dificuldades o canhoto do envelope, digitou os dados na máquina, enfiou o invólucro e retirou o comprovante ao fim do qual constavam informações de conservação do documento.
Um bafo demoníaco invadiu as faces assim que pôs o pé esquerdo nos limites da porta da rua. Caminhou esbaforido até o escritório, ligou o condicionador de ar e antes das cinco da tarde a conta de energia elétrica repousou sobre a mesa. Aumento de cinqüenta por cento de consumo. A de casa deveria vir no mesmo patamar. Se continuasse assim, o orçamento estouraria.
Proposta de dormirem de janelas abertas rejeitada pela esposa. Ladrões, falta de segurança, bichos peçonhentos.
- Além do que, garantiu a esposa, janela aberta não significa menos calor. Como sempre, tinha razão.
Jantou e, antes de tomar banho, um lampejo raspou-lhe a memória. Caminhou cinco quadras, destravou a porta automática e notou os condicionadores de ar ligados. Destravou novamente a porta e esperou os minutos finais para as dez. Os caixas eletrônicos se desligaram, mas os condicionadores de ar mantiveram o trabalho intenso. Um auxiliar de escritório, cujo irmão trabalhara como segurança de banco, informava que a ventilação se fazia necessária para não provocar circuitos. Vinte e quatro horas de vento fresco para computadores, máquinas e equipamentos.
Na noite seguinte, entrou no banco faltando cinco minutos para as dez, varreu o ambiente dos caixas eletrônicos, passou um pano umedecido para retirar o excesso de sujeira, estendeu um colchonete e encetou o sono relaxante, interrompido nos primeiros raios quando o vigilante, provavelmente também despertando do sono, estranhou a situação e chamou a polícia.
- Dormiu aqui? Mas, como assim, cidadão?
- Estou pagando muita conta de condicionador de ar. Já que sou cliente do banco, posso usufruir de tudo o que me oferece. Ou há alguma lei que me proíba de dormir aqui?
O policial olhou desconfiado para o colega. O vigilante incomodou-se com a situação, mas não conhecia leis que vedassem os clientes de dormirem nas dependências da agência.
- Além do mais, sou excelente cliente. Tenho pouco dinheiro, mas meus cheques não voltam e tenho uma pancada de títulos de capitalização, fundos de renda fixa e seguros de vida, residencial e automobilístico.
Ao anoitecer, voltou à agência no horário da véspera, acompanhado da esposa e do filho mais novo. Acomodou o colchão de ar em um canto e o do filho em outro. Às cinco e quarenta e cinco o vigilante acordou a família. Enquanto esperava a abertura da porta automática, enfatizava que, além do ar refrigerado, contavam com forte segurança. À noite, voltando ao banco, entregou um pacote de coxinhas e duas latas de Coca-Cola.
O trato de coxinhas e refrigerantes se estenderia longo tempo se o gerente não se inquietasse com pessoas deitadas no escuro. Bateu no vidro dos fundos. Acordou o vigia, assustado com a visita inóspita. Depois de explicações, passou pela porta giratória e, em voz alta, solicitou que deixassem a agência.
- Daqui nós não saímos. Daqui ninguém nos tira.
O gerente silenciou. Telefonou para a polícia. Informado da situação pelos subordinados, o comandante adiantou que não poderia fazer nada. Obtivesse uma ordem judicial que a cumpriria.
Em pouco tempo, dezenas de curiosos se aglomeravam nas portas de vidro da agência no interior da qual o casal ressonava tranquilamente e o filho, aproveitando o grande número de telefones móveis com micro-câmeras, sorria, acenava, fazia presepadas.
De início, os advogados se recusaram ao despejo. Ameaçados de cancelamento de contrato por falta de prestação de serviços, entraram com o pedido de expulsão dos dorminhocos. O gerente ia pessoalmente ao fórum todas as tardes. Um dia o processo estava no protocolo; outro no assistente do diretor do cartório. Um dia, quase chegando às mãos do diretor do cartório; no outro, na mesa do diretor. Depois, o diretor faltou por motivos de doenças, dois feriados prolongados, férias do juiz, atentado contra o prédio, análise do pedido e, finalmente, a almejada ordem de despejo.
Telefonou para a polícia. Esperou das cinco e meia da tarde até dez da noite. Dez e quinze, dez e meia, onze horas, quinze para uma da manhã.
- Mas que raios? Só porque trouxe essa expulsão esse pessoal não vai aparecer?
- Nesse frio? Interveio o vigilante, acho que eles preferem ficar em casa, enrolados num edredom.
*Publicado originalmente na coluna Ficções, caderno Tem!, do Oeste Notícias (Presidente Prudente – SP) de 9 de abril de 2010.
segunda-feira, 5 de abril de 2010
DEZ DICAS PARA SER UMA JUÍZA
Uma desembargadora em fim de carreira levantou-se na manhã do septuagésimo aniversário determinada a encurtar o caminho entre os estudos excessivos e a efetiva aprovação no burocrático concurso da magistratura. Elaborou diretrizes para as mulheres ascenderem ao cargo de seus sonhos. Obviamente não possuem utilidade para os homens, pois partem de situações pragmáticas de quase cinco décadas de profissão construída sob a perspectiva feminina. Eis um resumo em dez itens:
1 – Conscientize-se: você é mal amada. Se alguém a amasse, você estaria planejando viagens, jantares, cinemas, teatros, saraus, caminhadas, festas, churrascos, encontros, salão de beleza, academia de ginástica, congressos científicos ou acadêmicos, empreendimentos financeiros ou atividades similares. Uma amada/amante jamais perde tempo em tentativas mórbidas.
2 – A mulher não se diferencia do homem pelos órgãos reprodutores, mas por duas características essenciais: feminilidade e odor di femina. Alguns travestis possuem feminilidade, mas não odor di femina. Uma mulher estulta, arrogante e inexorável eventualmente possui odor di femina, contudo padece de feminilidade. Convença-se: feminilidade e odor di femina estão longe de você.
3 – Jogue fora os lingeries. Maridos, namorados ou amantes se distanciarão. Quando loucura e desejo milagrosamente invadirem seu espírito, contrate assistentes técnicos. São baratos e acham-se aos milhões.
4 – Diferentemente da personagem de “Música anterior”, de Michel Laub, não perca tempo lendo Literatura, filosofia, sociologia ou economia. Requisite ao subordinado bajulador para resumir “A verdade e as formas jurídicas”, de Michel Foucault, e o capítulo que trata de direito em “O poder simbólico”, de Pierre Bourdieu. Aprenda desde já: direito é forma e jamais conteúdo.
5 – Se algum advogado discorrer sobre teorias sociológicas, filosóficas ou de ciências políticas, lembre-se de Kafka: o processo é uma loucura. Inverta as teorias, desestabilize os estudos dos últimos dois séculos, desmereça grandes pensadores e sentencie baseada na sua concepção de mundo. Devem constar de sua decisão palavras barrocas, frases ininteligíveis, parágrafos complicados e conclusões óbvias. Sua sentença promoverá dois resultados: muita pompa e nenhuma utilidade.
6 – Concentre suas leituras no Código Civil, Código Penal, Código Tributário Nacional, Consolidação das Leis Trabalhistas e competentes códigos de processo. A Constituição Federal não serve para nada. Nada se pode esperar de um país em que o presidente da República indica pessoas sem reputação ilibada e sem notório saber jurídico para a mais alta corte.
7 – Sem Constituição Federal e sem conhecimento profundo de teorias sociológicas, antropológicas, filosóficas ou econômicas, apareça no trabalho uma vez por semana. Lembre-se: a justiça é lenta, o processo é sem procedimento e seus prazos jamais se acabarão, mesmo que o Conselho Nacional de Justiça ordene que trabalhe de verdade.
8 – Jamais se curve às requisições dos tribunais superiores. Seu salário não pode ser confiscado, você não pode nem ser demitida nem transferida, ninguém pode pressioná-la. Você é uma Deusa: a rainha dos palácios infernais.
9 – Se você leu com interesse essas dicas em busca de soluções, artifícios, facilidades ou macetes para entrar na magistratura, tire o cavalo da chuva. Aprenda as formas, esqueça os conteúdos! Você vai ter de decorar livros, códigos e leis. Você ainda se acha mulher (e interessante?) perdendo tempo com isso? Todo mundo lê dicas de felicidade, de amor, de finanças, de costurar a boca do sapo para enfeitiçar um homem, de milagres, de construção, de viagens, de culinária ou de boa vida. Você acha que algum homem ou alguma mulher se encantariam com seus discursos sobre competência, jurisdição, poder originário, ato administrativo, formação de quadrilha, imposto de renda ou aviso prévio com multa de 40%?
10 – Se Heráclito acreditava na dinâmica da vida, a você foi dada a oportunidade de mudá-la: separe-se do marido, chute fora o namorado, consiga bom amante. A memória armazena o que nos deleita – e, em algumas situações, o que nos causa ojeriza. Se ainda pode se libertar dos domínios jurídicos superficiais, deixe ressonar em devaneios as palavras de Júlio Cesar ao marchar sobre Roma: Alea jact est.
*Publicado originalmente na coluna Ficções, caderno Tem!, do Oeste Notícias (Presidente Prudente – SP) de 2 de abril de 2010.
1 – Conscientize-se: você é mal amada. Se alguém a amasse, você estaria planejando viagens, jantares, cinemas, teatros, saraus, caminhadas, festas, churrascos, encontros, salão de beleza, academia de ginástica, congressos científicos ou acadêmicos, empreendimentos financeiros ou atividades similares. Uma amada/amante jamais perde tempo em tentativas mórbidas.
2 – A mulher não se diferencia do homem pelos órgãos reprodutores, mas por duas características essenciais: feminilidade e odor di femina. Alguns travestis possuem feminilidade, mas não odor di femina. Uma mulher estulta, arrogante e inexorável eventualmente possui odor di femina, contudo padece de feminilidade. Convença-se: feminilidade e odor di femina estão longe de você.
3 – Jogue fora os lingeries. Maridos, namorados ou amantes se distanciarão. Quando loucura e desejo milagrosamente invadirem seu espírito, contrate assistentes técnicos. São baratos e acham-se aos milhões.
4 – Diferentemente da personagem de “Música anterior”, de Michel Laub, não perca tempo lendo Literatura, filosofia, sociologia ou economia. Requisite ao subordinado bajulador para resumir “A verdade e as formas jurídicas”, de Michel Foucault, e o capítulo que trata de direito em “O poder simbólico”, de Pierre Bourdieu. Aprenda desde já: direito é forma e jamais conteúdo.
5 – Se algum advogado discorrer sobre teorias sociológicas, filosóficas ou de ciências políticas, lembre-se de Kafka: o processo é uma loucura. Inverta as teorias, desestabilize os estudos dos últimos dois séculos, desmereça grandes pensadores e sentencie baseada na sua concepção de mundo. Devem constar de sua decisão palavras barrocas, frases ininteligíveis, parágrafos complicados e conclusões óbvias. Sua sentença promoverá dois resultados: muita pompa e nenhuma utilidade.
6 – Concentre suas leituras no Código Civil, Código Penal, Código Tributário Nacional, Consolidação das Leis Trabalhistas e competentes códigos de processo. A Constituição Federal não serve para nada. Nada se pode esperar de um país em que o presidente da República indica pessoas sem reputação ilibada e sem notório saber jurídico para a mais alta corte.
7 – Sem Constituição Federal e sem conhecimento profundo de teorias sociológicas, antropológicas, filosóficas ou econômicas, apareça no trabalho uma vez por semana. Lembre-se: a justiça é lenta, o processo é sem procedimento e seus prazos jamais se acabarão, mesmo que o Conselho Nacional de Justiça ordene que trabalhe de verdade.
8 – Jamais se curve às requisições dos tribunais superiores. Seu salário não pode ser confiscado, você não pode nem ser demitida nem transferida, ninguém pode pressioná-la. Você é uma Deusa: a rainha dos palácios infernais.
9 – Se você leu com interesse essas dicas em busca de soluções, artifícios, facilidades ou macetes para entrar na magistratura, tire o cavalo da chuva. Aprenda as formas, esqueça os conteúdos! Você vai ter de decorar livros, códigos e leis. Você ainda se acha mulher (e interessante?) perdendo tempo com isso? Todo mundo lê dicas de felicidade, de amor, de finanças, de costurar a boca do sapo para enfeitiçar um homem, de milagres, de construção, de viagens, de culinária ou de boa vida. Você acha que algum homem ou alguma mulher se encantariam com seus discursos sobre competência, jurisdição, poder originário, ato administrativo, formação de quadrilha, imposto de renda ou aviso prévio com multa de 40%?
10 – Se Heráclito acreditava na dinâmica da vida, a você foi dada a oportunidade de mudá-la: separe-se do marido, chute fora o namorado, consiga bom amante. A memória armazena o que nos deleita – e, em algumas situações, o que nos causa ojeriza. Se ainda pode se libertar dos domínios jurídicos superficiais, deixe ressonar em devaneios as palavras de Júlio Cesar ao marchar sobre Roma: Alea jact est.
*Publicado originalmente na coluna Ficções, caderno Tem!, do Oeste Notícias (Presidente Prudente – SP) de 2 de abril de 2010.
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