Chegou do supermercado com quatro sacolas pesadas numa das quais uma caixa de chocolate Benerist berrava. A sobrinha – a sobrinha, a irmã e a mãe vieram de Porto alegre para morarem com ela – abriu um sorriso diante da dedução óbvia de que se lambuzaria por algum tempo.
Se a tia trazia uma caixa de chocolates sem que pedisse, solicitaria algo importante.
Daniela, a sobrinha, disfarçando o interesse de se apossar das guloseimas, olhava distraidamente ora para o chão, ora para o céu, balançando o corpo sincronizadamente.
- Meu bem, sorriu a tia, acho que... As solicitações da tia começam com acho que. – Acho que você poderia me fazer um favor. Bem pequenino e simples. Você consegue?
Daniela assentiu, agora olhando descaradamente a caixa que, mesmo sem recursos visuais atraentes, dançava sobre a mesa.
- Preste bem atenção, prosseguiu a tia. Vou te dar esses chocolates. Vou te dar essa caixinha se me prometeres que não vais entrar na cozinha.
- Por quê?
- Porque a tia vai receber um amigo muito, muito, muito especial. Vai fazer um bolo para ele e não quer ver você zanzando pela cozinha.
A menina pegou o chocolate. Caminhava para a sala quando viu um pacote de farinha de trigo de dois quilos. Chamaram-lhe a atenção o desenho de um cavalo enorme e de um urso baixinho que, sentada no sofá, sem vontade de comer o chocolate e de assistir ao filme, giravam em seus olhos.
Da cozinha, a tia, a mãe e a avó riam em alto tom, andando de um lado para o outro, limpando o chão, os móveis, os cantos do teto, mudando a mesa e as cadeiras, buscando toalhas novas nos armários da sala, rindo mais vezes. Por que ela não poderia entrar na cozinha?
Se elas não a queriam na cozinha, guardavam o pacote para o namorado da tia – que conversa de amigo muito especial era aquela? – que se apresentaria naquela noite. Que ele aparecesse, tudo bem. Mas comer aquela imensa caixa de chocolate – uma caixa com desenhos só poderia ser uma caixa de chocolate – não comeria.
Inquieta, Daniela pensava em como esconderia a caixa sem deixar rastros. Não demorou muito para ir tomar banho quando a mãe ordenou nem se recusou a jantar quando a avó pediu.
- Um anjo, falou a tia, vendo a obediência da sobrinha. – Entende direitinho o que a gente pede. Nem precisei falar duas vezes. Um anjo.
Por volta das 20h o bolo pronto esfriava sobre a pia da cozinha. Na mesa, dois pratos, dois copos, talheres e guardanapos. Mãe, irmã e sobrinha dariam uma voltinha e trinta minutos depois demonstrariam surpresa pela presença do namorado.
Aproveitando o silêncio, a concentração da tia no banheiro, da mãe e da avó no quarto, Daniela viu a farinha de trigo aberta. Entretanto, se se aproximava da pia, o pacote distanciava-se de seus braços. Pensou numa maneira prática de obtê-lo, mas não conseguiria arrastar uma das pesadas cadeiras até lá.
Embaixo da caixa de farinho de trigo, os olhos displicentes identificaram um pano esquecido. Não pensou sete vezes. Agarrou o pano e vupt...
Quando a mãe, a irmã e a sobrinha chegaram do passeio, a tia perguntou docemente:
- Minha querida, por acaso você tem algo a nos contar?
A menina respondeu negativamente.
- Nada mesmo? Insistia a tia.
O silêncio prevalecia.
- Encontrei na cozinha um monte de pozinho branco espalhado no chão, na mesa, no bolo. No chão, além do pozinho branco, havia alguns pezinhos. Você saberia quem foi?
- Como eu poderia saber se estou chegando agora, tia? Tenho certeza que foi o cachorro. A vovó deixou o portão aberto e ele entrou.
- Um cachorro de sandálias de número 26?
- Tenho certeza. Os cachorros são muito espertos.
O namorado estrondou um riso. Afinal, nem todos os dias entrava numa casa invadida por cachorros de sapato.
*Publicado originalmente no Jornal de Assis (Assis – SP) de 16 de abril de 2009.
2 comentários:
um cachorro de sapato é tudo de bom.
Fernanda
muito bem estruturada e pueril, pena que você não escreva no jornal da nossa cidade
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