“Que eu faço versos
Mas sem espinhos,
Com partituras
Pros passarinhos...”
(Antônio Lázaro de Almeida Prado)
Violou o compasso da rotina. Perdera o dia por cinco minutos de sono de procedência desconhecida. Em trinta e cinco anos de vida, vinte de trabalho e cinco de assisense, primeira vez um descuido assim.
Acordava diariamente às seis e meia, tomava banho, café, escovava os dentes, vestia-se, entrava no carro, descia no trabalho, onde ficava das 7h45 ao meio-dia, almoçava entre meio-dia e duas horas, voltava ao trabalho, encerrando o expediente às 18h.
Aprontava-se no banheiro privativo do escritório, trocava a roupa, comia uma maçã no jantar e corria para a faculdade. Nada aprendia. Certificado ao fim do curso proporcionaria cobiçado aumento salarial.
Naquela manhã, o despertador irradiara o som pelo quarto. Em gesto impensado, bateu o braço no aparelho que caiu no tapete grosso. Minutos depois, levantou correndo, olhou o relógio no tapete, deu-se perdido o dia.
Deixou o café esfriando em cima da pia, abriu o jornal. Umas ofertas de emprego, duas ou três notícias de roubos na região, um acidente de tráfego na cidade vizinha, desapropriação de uma área atrás da UNESP, aquisição de acervo para a biblioteca pública municipal, apresentação de pianista internacional, noite de autógrafos, campeões de basquetebol nacional jogando em Assis.
Sentiu-se perdido. Com exceção das manhãs de sábado, limpava a cozinha, o banheiro e o quarto, dificilmente ficava em casa. Inquieto, lembrou da sugestão do avô: admirar as belezas matinais.
- Desde quando há algo a se admirar pela manhã?
Sorveu um gole do café frio, fez uma careta, depositou a xícara na pia. Curiosidade de passear na pequena sacada do oitavo andar?
Contrariando-se e aceitando a indicação do avô, percebeu como o teatro representava uma harmonia singular no cenário urbano moderno, como os campos espalhados nos quatro pontos cardeais simbolizavam a esperança angustiada (que esperança?), como o São Francisco de lata exalava mensagem de felicidade e de segurança...
Os olhos passeavam. Contemplariam a beleza da Cidade Fraternal. Entretanto, um fato inusitado causou inicialmente admiração e, em seguida, assombro.
Entrou no banheiro, lavou o rosto com água gelada, bebeu mais um gole de café frio, assomou à sacada, olhando uns pássaros enfileirados nos fios, formando uma melodia.
Tomou papel e lápis. Desenhou conforme a visão permitia. A última anotação coincidiu com o caminhão barulhento espantando as aves.
Os riscos pouco faziam sentido. Três toques fortes e seguidos na porta:
- Bom dia. Eu sou sua nova vizinha e gostaria... Ela percebeu que ele estava sem roupa. Do jeito que acordara, permanecera. As faces da vizinha ruborizaram. Ele pouco se importou.
- Por acaso você entende de música?
Olhou o papel: a estrutura dos “boleros”, de Ravel. Ela buscou uma flauta transversal, entoando suave e gradativamente a intensidade das notas. Ele se encantou.
- Um café comigo? Perguntou insolitamente.
Ela o olhou da cabeça aos pés, sorriu. Ele se deu conta do convite impróprio, correu ao quarto, voltou com calças e camisas amassadas.
- Mas eu faço o café, adiantou-se, depois de descobrir uma xícara, metade do líquido jazendo sobre a pia.
*Publicado originalmente no Jornal de Assis (Assis – SP) de 23 de abril de 2009.
3 comentários:
adoro seus textos
passo aqui toda quinta
fui
a poesia do Prado casou bem com sua história parabéns
lúcia
Não ler um texto seu é perder muito.
Parabéns pela criatividade e sensibiliddae.
Amo muito você!
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