quinta-feira, 30 de abril de 2009

A prima

- Se tem uma mulher que eu admiro, essa mulher é a Ema. Afirmava a mãe, terminando de separar os grãos de feijão bons dos ruins, bebendo o resto de leite quase frio, deixado na mesa pela filha mais nova.

Os filhos entreolharam-se abismados com a confissão. Ema não namorava porque tinha gênio intempestivo. Se algum pretendente se atrevesse a fazer-lhe declarações, enviar-lhe versos românticos, flores ou caixas de chocolate, ouviria palavras de desafeto e de revolta, além de ver os versos, as flores ou os chocolates dilacerados em alguma lata de lixo.

- Admiro a Ema porque ela é uma mulher corajosa. Fala na cara da pessoa. Não tem medo. Ela não gosta? Ela não aprova? Ela não simpatiza? Não tem rodeios. Diz na cara para a pessoa desaparecer da frente dela.

Ainda criança, Ema demonstrara os primeiros aspectos profundos de mau humor permanente. Ganhara de presente de dia das crianças um cachorro engraçado que a avó comprara de um vizinho de chácara. Enquanto não a incomodou com seus ganidos noturnos lancinantes, o cãozinho desfrutou de momentos de felicidade, mas bastou um ensaio de rosnado para a menina se levantar e, como uma bola de futebol americana rasgando a noite, expulsar o cachorro cuja ausência seria percebida pelo pai nas primeiras horas de Sol.

- Ah, se eu não admiro aquela danada! Continuava a mãe, contrastando alguns feijões contra a luz. A vista apresentava os primeiros indícios de falha.

Ema já passara dos vinte anos. Morava com o pai. Se os namorados desapareciam, os cachorros fugiam e os vizinhos cortavam caminho quando a encontravam nas calçadas, cônscios do gênio incontrolável, o ladrão que tentara arrombar a casa durante a madrugada pensaria mais detidamente quando quisesse assaltar outra residência.

Tomou comprimido de dor de cabeça antes das 22h. Dormiu. Faltavam poucos minutos para as três horas. Pegou o despertador olhando incredulamente. Quem poderia bater à porta?

Levantou-se, vestiu o roupão, abriu a janela da sala de estar da qual viu um homem, metro e oitenta de altura, meia escura cobrindo as faces, forçando a porta com um pé de cabra.

- Muito bonito! Muito bonito! Gritava, batendo na lataria da janela. Isso é hora de acordar os outros? Não tem o que fazer? Vagabundo! Vai azucrinar o cão com reza! Isso é hora de vir para a casa dos outros?

Estupefato com o enfrentamento da dona da casa, o ladrão foi para direita, voltou correndo pela esquerda, tropeçou na mangueira, esmagou um anão de jardim e saiu correndo em direção ao muro, caindo dele duas ou três vezes até conseguir transpô-lo.

No dia seguinte, ouvindo o ocorrido da madrugada, o vizinho ironizava:

- Se põe até ladrão para correr, imagine o que não faria com um marido fora da linha?

*Publicado originalmente no Jornal de Assis (Assis – SP) de 30 de abril de 2009.

quinta-feira, 23 de abril de 2009

O homem ocupado

“Que eu faço versos
Mas sem espinhos,
Com partituras
Pros passarinhos...”
(Antônio Lázaro de Almeida Prado)

Violou o compasso da rotina. Perdera o dia por cinco minutos de sono de procedência desconhecida. Em trinta e cinco anos de vida, vinte de trabalho e cinco de assisense, primeira vez um descuido assim.

Acordava diariamente às seis e meia, tomava banho, café, escovava os dentes, vestia-se, entrava no carro, descia no trabalho, onde ficava das 7h45 ao meio-dia, almoçava entre meio-dia e duas horas, voltava ao trabalho, encerrando o expediente às 18h.

Aprontava-se no banheiro privativo do escritório, trocava a roupa, comia uma maçã no jantar e corria para a faculdade. Nada aprendia. Certificado ao fim do curso proporcionaria cobiçado aumento salarial.

Naquela manhã, o despertador irradiara o som pelo quarto. Em gesto impensado, bateu o braço no aparelho que caiu no tapete grosso. Minutos depois, levantou correndo, olhou o relógio no tapete, deu-se perdido o dia.

Deixou o café esfriando em cima da pia, abriu o jornal. Umas ofertas de emprego, duas ou três notícias de roubos na região, um acidente de tráfego na cidade vizinha, desapropriação de uma área atrás da UNESP, aquisição de acervo para a biblioteca pública municipal, apresentação de pianista internacional, noite de autógrafos, campeões de basquetebol nacional jogando em Assis.

Sentiu-se perdido. Com exceção das manhãs de sábado, limpava a cozinha, o banheiro e o quarto, dificilmente ficava em casa. Inquieto, lembrou da sugestão do avô: admirar as belezas matinais.

- Desde quando há algo a se admirar pela manhã?

Sorveu um gole do café frio, fez uma careta, depositou a xícara na pia. Curiosidade de passear na pequena sacada do oitavo andar?

Contrariando-se e aceitando a indicação do avô, percebeu como o teatro representava uma harmonia singular no cenário urbano moderno, como os campos espalhados nos quatro pontos cardeais simbolizavam a esperança angustiada (que esperança?), como o São Francisco de lata exalava mensagem de felicidade e de segurança...

Os olhos passeavam. Contemplariam a beleza da Cidade Fraternal. Entretanto, um fato inusitado causou inicialmente admiração e, em seguida, assombro.

Entrou no banheiro, lavou o rosto com água gelada, bebeu mais um gole de café frio, assomou à sacada, olhando uns pássaros enfileirados nos fios, formando uma melodia.

Tomou papel e lápis. Desenhou conforme a visão permitia. A última anotação coincidiu com o caminhão barulhento espantando as aves.

Os riscos pouco faziam sentido. Três toques fortes e seguidos na porta:

- Bom dia. Eu sou sua nova vizinha e gostaria... Ela percebeu que ele estava sem roupa. Do jeito que acordara, permanecera. As faces da vizinha ruborizaram. Ele pouco se importou.

- Por acaso você entende de música?

Olhou o papel: a estrutura dos “boleros”, de Ravel. Ela buscou uma flauta transversal, entoando suave e gradativamente a intensidade das notas. Ele se encantou.

- Um café comigo? Perguntou insolitamente.

Ela o olhou da cabeça aos pés, sorriu. Ele se deu conta do convite impróprio, correu ao quarto, voltou com calças e camisas amassadas.

- Mas eu faço o café, adiantou-se, depois de descobrir uma xícara, metade do líquido jazendo sobre a pia.

*Publicado originalmente no Jornal de Assis (Assis – SP) de 23 de abril de 2009.