segunda-feira, 15 de outubro de 2012

MAÍSA


A memória guarda as coisas que amamos, declara Rubem Alves. A Literatura e a Filosofia infestam minha memória. Eu as amo. Algumas situações amorosas são claras; outras precisam de tempo, de resistência, de indiferença. Tempo, resistência e indiferença são três fatores essenciais para descobrirmos, meses, anos ou décadas depois que amamos cenas, pessoas, lugares.

 

Entrei numa excursão de estudantes, professores, pais, mães, avós e namorados que saíram de Rancharia (SP) rumo às cidades históricas de Minas Gerais. Uma de minhas aventuras mais memoráveis considerando que, tanto na ida quanto na volta, tivemos problemas com o ônibus. Na ida, percorremos de São José do Rio Preto (SP) a Uberaba (MG) sem embreagem; na volta, o veículo deu indícios de incêndio em Capitólio, município mineiro em que aguardamos socorro das dez da noite às três da manhã.

 

Chegamos a Ouro Preto – primeira cidade do roteiro – após meio-dia, guardamos as bagagens e caminhamos até um restaurante. Em seguida, paramos na casa da poetisa Elizabeth Bishop, alguns entraram numa mina, vislumbramos igrejas. O grupo se organizou para voltar à pousada e dormir, entretanto a vontade de percorrer as ruas íngremes da cidade que tanto enfeitiçara Vinicius de Moraes me fez reavivar a república de universitários onde me hospedara doze anos antes.

 

Nos dias seguintes, as imagens da primeira viagem sequer apareceram. Não me lembrava de pontos marcantes, de explicações pontuais, de situações lancinantes, mas bastou nos deslocarmos aos doze profetas esculpidos em pedra sabão e às sete passagens do calvário de Cristo dispostos em seis capelinhas em Congonhas para, numa retrospectiva instantânea, vislumbrar Maísa pedindo mais tempo ao então zelador. Transpuséramos mais de mil quilômetros para nos deslumbrarmos com a obra de Aleijadinho, mas o vigia estúpido respondeu negativamente ao pedido da professora.

 

Atônito com o tratamento ultrajante, pus-me ao lado de Maísa que, sentada num dos degraus do Santuário de Bom Jesus de Matosinhos, chorava desconsoladamente os minutos que nos fecharam as portas. Luciene, muito mais prática e inteligente do que eu, saiu em disparada fotografando o interior das seis capelas. Quando entramos no ônibus, improvisei discurso adolescente, prometi-lhe versos que entreguei, se a memória não me falha, duas semanas antes do término das aulas.

 

Doze anos depois, Adriana examinava tranquilamente as sete cenas dos tormentos de Cristo e, quando mais uma vez, voltamos ao templo central, a imagem de Maísa, desfeita em prantos, saltou-me das lembranças. Já não diferenciava os integrantes da excursão daquele instante e os da viagem de doze anos antes. Espalhavam-se, comunicavam-se, complementavam-se, transformavam passado em presente, desdobravam os limites entre imaginação e realidade.

 

Guardamos na memória as coisas que amamos, enfatiza Rubem Alves. Se diante de tanta festa e alegria, acompanhado de Adriana e de minha mãe, eu enxergava o choro inconformado e vencedor de minha professora de História e Sociologia da Arte no feriado da Proclamação da República de 1999, a justificativa repousava em simples constatação: amo Maísa.

 

Amo Maísa não porque se descabelou para nos levar às cidades históricas, nem porque nunca me azucrinou empurrando goela abaixo as teorias da arte, nem porque sempre nos escutou, compreendeu ou estimulou, nem porque chorou inconformada nos degraus do templo dos dozes profetas, mas amo Maísa Manaresi pelo fato de que, assim como Aleijadinho nos entalhes em pedra sabão e em madeira, ela venceu o tempo, cristalizou-se em minha memória e, portanto, alojou-se em meu coração. O segredo de Aleijadinho e Maísa? Eles não precisam de explicação, de convencimento, de demonstração. Basta olhar os trabalhos dos dois – distantes das ferramentas, da pedra sabão e da madeira, da lousa, do giz e das imensas pinturas guardadas numa pasta infantil descomunal – para concluir que arte não precisa de explicações: ou se é arrebatado, ou se é marginalizado. E, graças à professora Maísa, sinto-me sempre arrebatado. Obrigado, Maísa!

 

*A ser publicado na coluna Ficções, caderno Tem!, do Oeste Notícias (Presidente Prudente – SP) de 19 de outubro de 2012.

Um comentário:

Luciene Uemura disse...

Como nao lembrar daquela cena, e q viagem, somente boas recordacoes, muito obrigada por proporcionar tudo isso.