A
memória guarda as coisas que amamos, declara Rubem Alves. A Literatura e a
Filosofia infestam minha memória. Eu as amo. Algumas situações amorosas são
claras; outras precisam de tempo, de resistência, de indiferença. Tempo,
resistência e indiferença são três fatores essenciais para descobrirmos, meses,
anos ou décadas depois que amamos cenas, pessoas, lugares.
Entrei
numa excursão de estudantes, professores, pais, mães, avós e namorados que
saíram de Rancharia (SP) rumo às cidades históricas de Minas Gerais. Uma de
minhas aventuras mais memoráveis considerando que, tanto na ida quanto na
volta, tivemos problemas com o ônibus. Na ida, percorremos de São José do Rio
Preto (SP) a Uberaba (MG) sem embreagem; na volta, o veículo deu indícios de
incêndio em Capitólio, município mineiro em que aguardamos socorro das dez da
noite às três da manhã.
Chegamos
a Ouro Preto – primeira cidade do roteiro – após meio-dia, guardamos as
bagagens e caminhamos até um restaurante. Em seguida, paramos na casa da
poetisa Elizabeth Bishop, alguns entraram numa mina, vislumbramos igrejas. O grupo
se organizou para voltar à pousada e dormir, entretanto a vontade de percorrer
as ruas íngremes da cidade que tanto enfeitiçara Vinicius de Moraes me fez
reavivar a república de universitários onde me hospedara doze anos antes.
Nos
dias seguintes, as imagens da primeira viagem sequer apareceram. Não me
lembrava de pontos marcantes, de explicações pontuais, de situações
lancinantes, mas bastou nos deslocarmos aos doze profetas esculpidos em pedra
sabão e às sete passagens do calvário de Cristo dispostos em seis capelinhas em
Congonhas para, numa retrospectiva instantânea, vislumbrar Maísa pedindo mais
tempo ao então zelador. Transpuséramos mais de mil quilômetros para nos
deslumbrarmos com a obra de Aleijadinho, mas o vigia estúpido respondeu
negativamente ao pedido da professora.
Atônito
com o tratamento ultrajante, pus-me ao lado de Maísa que, sentada num dos
degraus do Santuário de Bom Jesus de Matosinhos, chorava desconsoladamente os
minutos que nos fecharam as portas. Luciene, muito mais prática e inteligente
do que eu, saiu em disparada fotografando o interior das seis capelas. Quando
entramos no ônibus, improvisei discurso adolescente, prometi-lhe versos que
entreguei, se a memória não me falha, duas semanas antes do término das aulas.
Doze
anos depois, Adriana examinava tranquilamente as sete cenas dos tormentos de
Cristo e, quando mais uma vez, voltamos ao templo central, a imagem de Maísa,
desfeita em prantos, saltou-me das lembranças. Já não diferenciava os
integrantes da excursão daquele instante e os da viagem de doze anos antes. Espalhavam-se,
comunicavam-se, complementavam-se, transformavam passado em presente,
desdobravam os limites entre imaginação e realidade.
Guardamos
na memória as coisas que amamos, enfatiza Rubem Alves. Se diante de tanta festa
e alegria, acompanhado de Adriana e de minha mãe, eu enxergava o choro
inconformado e vencedor de minha professora de História e Sociologia da Arte no
feriado da Proclamação da República de 1999, a justificativa repousava em simples
constatação: amo Maísa.
Amo
Maísa não porque se descabelou para nos levar às cidades históricas, nem porque
nunca me azucrinou empurrando goela abaixo as teorias da arte, nem porque
sempre nos escutou, compreendeu ou estimulou, nem porque chorou inconformada
nos degraus do templo dos dozes profetas, mas amo Maísa Manaresi pelo fato de
que, assim como Aleijadinho nos entalhes em pedra sabão e em madeira, ela
venceu o tempo, cristalizou-se em minha memória e, portanto, alojou-se em meu
coração. O segredo de Aleijadinho e Maísa? Eles não precisam de explicação, de
convencimento, de demonstração. Basta olhar os trabalhos dos dois – distantes
das ferramentas, da pedra sabão e da madeira, da lousa, do giz e das imensas
pinturas guardadas numa pasta infantil descomunal – para concluir que arte não
precisa de explicações: ou se é arrebatado, ou se é marginalizado. E, graças à
professora Maísa, sinto-me sempre arrebatado. Obrigado, Maísa!
*A
ser publicado na coluna Ficções,
caderno Tem!, do Oeste Notícias (Presidente Prudente – SP) de 19 de outubro de 2012.
Um comentário:
Como nao lembrar daquela cena, e q viagem, somente boas recordacoes, muito obrigada por proporcionar tudo isso.
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