Indagado por um entrevistador de uma revista de variedades, o crítico literário Wilson Martins respondeu que alguns escritores de grande qualidade ainda precisavam ser levados aos mais diversos cantos do país e, entre cinco ou seis nomes, destacava os gaúchos Luiz Antônio de Assis Brasil e Sergio Faraco.
Wilson Martins não estava equivocado ao diferenciar qualidade e difusão literária. Conheci Sergio Faraco por catálogo de editora. Adquiri Lágrimas na chuva, memórias da União Soviética, pensando que o Faraco dali se tratasse de famoso autor de livros de língua portuguesa de ensino médio. Frustrei-me inicialmente. Mesmo receoso, decidi enfrentar as considerações de uma testemunha da história depois de passar os olhos pela apresentação de Erico Veríssimo.
Ultrapassadas as dez páginas iniciais, saí deslizando em busca de duas respostas: Onde se escondia um escritor de tamanha magnitude? Se se cuidava de um livro de memórias – considerando sempre que a memória possui um filtro seletivo inexplicável – em que ponto se encerrava a realidade e se iniciava o romance, ladeado por uma linguagem límpida, cristalina, coesa, escorreita?
Descobri que se tratava de um premiado e reconhecido contista do Rio Grande do Sul. Li seus contos, mas confesso que entre os papéis sociais praticados por Sergio Faraco opto pelo memorialista sensível e cronista superior que faz da concisão ferramenta eficaz.
A leveza de Viva o alegrete constitui paradigma para quem deseja boas histórias assim como aos interessados em se dedicar à escrita de alta qualidade. Leveza e qualidade que são novamente identificadas em O pão e a esfinge seguido de Quintana e Eu.
A obra, que não ultrapassa cem páginas, divide-se em duas partes, sendo a primeira destinada às crônicas propriamente ditas e a segunda à transcrição, à reprodução e aos comentários das cartas recebidas de Mario Quintana.
A primeira crônica – que também dá título ao livro – trata dos questionamentos dos leitores entre o amálgama teórico e pragmático dos enredos na vida cotidiana do escritor. Faraco ressalta que nem sempre o objeto de criação corresponde diretamente a alguma situação presenciada ou vivida, encerrando a questão com apontamentos sobre as necessidades de inventar e de viver. A mudança permanente entre realidade e ficção desembocaria em patologias que, quanto maiores, mais se complicariam com o tempo.
As crônicas ainda perfazem um conjunto temático de outros trabalhos. São os casos da paixão por carro ou do gosto pelo snooker – sobre os quais escreveu textos mais extensos e mais detalhados – ou o Titanic.
O navio desaparecido no início do século XX parece enfeitiçar o menino Faraco, ouvindo atenciosamente notícias e considerações sobre o naufrágio, e mais tarde, continua exercendo fascínio sobre o escritor maduro que volta à abordagem do assunto. Como se um livro inteiro não bastasse, as reminiscências impressionantes sobre a embarcação consumiriam parte significativa de O pão e a esfinge, resgatando e redimensionando os limites da estética, da história oficial e dos indivíduos, das virtudes e dos defeitos, da arrogância e da perenidade.
Embora alguns acreditem na efemeridade da crônica, o imperecível se sobressai nas cartas de um Quintana geralmente desconhecido do grande público: o Quintana da vida privada. Que gosta de conversar com amigos e ajudá-los das maneiras mais cômicas, de discutir pormenores literários ou se estender em questões contratuais, de esclarecer mal entendidos e, principalmente, de apaziguar os ânimos, de não ceder aos delírios freqüentes da morte ou de fazer da escrita, mesmo adoentado em cima da cama e com movimentos reduzidos, um subterfúgio da sanidade, da serenidade e do transcendentalismo.
Seja pela retomada de temas que lhe embevecem, seja pela observação sincera e a contextualização particular das relações com o poeta Quintana, O pão e a esfinge seguido de Quintana e Eu reúne as predileções e lembranças de ternura e puerilidade de um dos maiores contistas brasileiros.
*Publicado originalmente na edição mensal do Jornal Rascunho (Curitiba – PR) – Dezembro/2009.