sábado, 11 de maio de 2019

RESPOSTA PARA MINHA MÃE


Para TODAS as minhas filhas

Voltávamos de Tarumã quando minha mãe disparou:
- Será que eu vou fazer falta?
Nos últimos dois anos, especialmente depois do falecimento de Vó Isaura, meu pai conversa sobre o fim da vida, demonstrando preocupações com o tempo e, com isso, incentivando-me à conclusão de projetos pessoais, destacando os culturais e os acadêmicos. Quase sempre argumenta que, em alguns anos, a mobilidade diminuirá e as limitações aflorarão.
Quando tratam da brevidade da vida, cada um a seu modo, Cícero e Sêneca ressaltam que precisamos aprender a distinguir qualidade de quantidade de modo que, no pouco tempo, busquemos sempre a qualidade. Segundo esses pensadores, mais interessante viver cinco anos bem vividos do que cem anos infernais.
Indo pelo mesmo caminho, o eterno Rubem Alves, apoiando-se em Roland Barthes, lembra-nos que, na vida, muito mais do que o saber, precisamos apreciar o sabor. Não basta falar inglês – que é o saber – se você não pode usar o idioma para atividades prazerosas, ouvir ou cantar música, assistir a filmes ou peças de teatro ou se perder em Charles Dickens, Oscar Wilde, Virginia Woolf, Robert Louis Stevenson, Edgar Allan Poe ou Arthur Conan Doyle, conhecer Nova York, Londres ou Dublin. Música, teatro, cinema, literatura e viagens são o sabor da vida.
Depois da pergunta de minha mãe, passei a refletir sobre o tempo. Quanto tempo temos? O que ficará no coração? O que se guardará na memória?
O coração – volto a Rubem Alves – guarda o que amamos. O tempo que temos na vida é o suficiente para descobrir o que e quem somos e, depois, apostar as energias em projetos. E a memória – tão estudada por intelectuais da filosofia, da literatura, da história e da psicanálise – inevitável e aleatoriamente, sem termos comando sobre ela, guardará o que desejar, selecionando cenas, montando filmes – curtos ou longos – do que vivemos ou desejamos ou deixamos de viver, resgatando sons e imagens, procurando odores e olores.
Se, ao fim desta jornada, eu puder mandar em minha memória, quero que ela se encha de coisas que DERAM sabor à minha vida:
- Regis, Vó Laura, Vó Isaura e eu espremidos no banco de trás e a senhora, painho e Jovian dividindo o banco da frente de nosso Chevete 1982, placas CC 5757, voltando de Lucena/PB ou de Alagoa Grande/PB ou indo para Recife ou Barreiros/PE;
- Número Um escapando para a rua ou dando cambalhota ao reconhecer o carro dobrando a esquina;
- Vó Laura passando a tarde crochetando, indo para a casa de Iaiá, de Marinalva ou de Fátima;
- Vó Isaura plantando, arrancando matos, cuidando de galo, galinhas e perus no quintal da casa da Rua Monte Castelo;
- Jovian, Regis e eu brincando na Rua São Paulo de “Pai da Rua”, de “Garrafão” ou de “Peão”, jogando futebol, correndo desesperadamente atrás da bola de vôlei antes que Fátima, irritada pelo incômodo, a rasgasse em cinco partes, gritarias por causa de bicicleta, conversas inúteis, risos provocados, fim da tarde, compra do pão na Padaria Novo Mundo;
- Vó Isaura tentando consertar a televisão em preto e branco para que pudéssemos assistir ao jornal e à novela;
- As reuniões do grêmio na Escola Estadual Maria Honorina Santiago, com painho coordenando nossos objetivos e respaldando nossos sonhos e projetos de atividade política estudantil;
- Jovian e eu correndo dos bezerros que escaparam no caminho da Levada, quando substituímos o trajeto do hospital Ceslau Gadelha, voltando da Escola Normal;
- Vó Laura e Vó Isaura reclamando de reumatismo e de falta de apetite, mas nunca se recusando a bater perna ou a montar um prato de almoço atrás do qual praticamente desapareciam;
- Vó Laura nadando na praia;
- Vó Isaura com medo de entrar no mar e esperando o gás da Coca-Cola sair para evitar ficar “bêbada”;
- Painho acordando às cinco horas da manhã para, no terraço, com os pés pendurados no suporte da mesa, datilografar os estatutos dos grêmios e, mais tarde, da USES (União Santa-ritense de Estudantes Secundaristas);
- Painho e Montgomery embrulhando a máquina de datilografia que, apenas no aniversário ou no dia dos pais, painho saberia que era um presente para ele;
- Painho entrando em casa com um som – hoje já desaparecido – em que cabiam sete cd’s e trazendo, de presente de dia das mães, uma coletânea de Agnaldo Timóteo e Ângela Maria;
- Painho indo pegar emprestada a Kombi de Bernardino para que ele, eu, Regis, Jovian, Vó Laura, Vó Isaura, Alan, Junior e Tia Fátima passássemos o ano novo com a senhora no Hospital Santa Paula. Painho dirigindo a Kombi, Vó Laura e Vó Isaura sentadas ao lado dele, Tia Fátima acomodada num banco de madeira, segurando um barbante que fechava a porta sem trava, Regis, Jovian, Alan, Junior e eu rolando de um lado ao outro naquele veículo de entrega de mercadorias do mercadinho;
- Dine, Neves e a senhora tentando abrir a porta da casa de praia de Teka;
- A senhora indo comprar frango na feirinha para o almoço de domingo;
- A gente comprando o material escolar;
- A senhora reclamando comigo por meus gritos e berros no seu consultório;
- As idas ao Teatro Santa Rosa;
- Jovian desocupando meu velho baú e, imitando o que tinha visto no teatro, retirando de dentro dele aviões de papel lançados em todas as direções, pulando de um lado a outro, fazendo caretas e sorrisos.
O início de minha adolescência coincidiu com o início da nova vida no interior de São Paulo. Outras vidas se plasmaram diante das nossas. Se, ao fim desta jornada, eu puder mandar em minha memória, quero que ela se encha de coisas que hoje DÃO sabor à minha vida:
- Seus protestos inconformados quando falei que não mais veria Emily pelo fato de ter acabado o namoro com a mãe dela e, quase dez anos depois, confidenciar-me que a incluíra em suas orações;
- Suas tentativas de aproximação de Natália quando, ainda pequena, apareceu pela primeira vez em casa, enrolada nos braços da mãe em uma manta felpuda;
- Seu choro de emoção por presenciar o nascimento de Isaura;
- Seu choro de desespero quando Jovian sofreu o acidente de carro em São Paulo, fugindo de bandidos;
- Seus agradecimentos a Regis por ter consertado seu telefone, ter aberto uma conta no facebook ou ter postado as fotos de seus trabalhos artesanais nas redes sociais;
- Painho debruçando-se sobre os problemas comunitários de Maracaí, discutindo questões importantes no Sindicato dos Servidores Municipais ou na UMAC (União Maracaiense de Associações Comunitárias), ensinando-nos diariamente o exercício da serenidade e a prática do perdão.
Em algum ponto desse vasto futuro, fatalmente chegará o momento de os corpos fraquejarem, os espíritos buscarem a liberdade e a vida eterna, tão consagrada nos textos bíblicos cujas palavras ecoam na Igreja ou no Centro Espírita Paz, se transformar em realidade.
Saberei da ruptura da vida terrena pela falta de conversar com a senhora e painho ao almoço ou ao jantar, de sentir-me sozinho nas caminhadas de fim de tarde, da ausência das inúmeras repetições da mesma história nos nossos deslocamentos entre Maracaí e Assis, Maracaí e Tarumã ou Maracaí e Paraguaçu Paulista, dos seus choros com saudades de Santa Rita ou de suas lamentações quando, em Santa Rita, deseja imediatamente voltar a Maracaí, da falta do recebimento de mensagens, fotos e vídeos pelo zap, de seu trabalho de pintura, de bordado e de outras artes até a madrugada, de seus infinitos comentários sobre tudo e sobre todos, da senhora colocando o almoço ou de painho separando o iogurte e o pão do seu café da manhã, das risadas em incontáveis momentos...
Muitos momentos surgirão nos quais, assim como aquele personagem de João Cabral de Melo Neto, ansioso por saltar da ponte da vida, desequilibrar-me-ei diante dos problemas e dos dissabores. Nesses momentos, por mais que as sombras queiram invadir o campo de luz ou por mais que eu me perca nos caminhos sem chegar a destino nenhum, lembrarei do verso de Cecília Meireles, repetindo para mim mesmo: não estou perdido, mas desencontrado. E, tenho certeza, de que, diante da dor da ausência, tentarei me encontrar de todas as formas para que, como refletiria Adélia Prado, eu me recorde do passado e, diante de todas as benesses obtidas neste plano espiritual, eu possa repetir: “e acreditei sem nenhum sofrimento. Louvado sejas!”.
À noite, os espaços vazios – deixados pela senhora e por painho – à mesa das refeições, ao computador, no ateliê ou no sofá denunciarão que metade de minha vida encerrou-se mais rapidamente do que o atrito da língua com o algodão doce e, nesse tempo tão curto, todos os momentos se foram sem que eu pudesse retê-los.
Quando me vejo mandando mensagens, áudios e vídeos para minhas filhas mais velhas e para as mães das filhas mais novas, agradecendo por serem minhas filhas, apenas repito o que a senhora faz comigo, Regis e Jovian ao nos agradecer por sermos seus filhos.
Sou muito grato por ter a sorte de ser seu filho assim como TODAS AS MINHAS FILHAS, mesmo não tendo consciência disso, também devem agradecer de alguma maneira. Se, ao fim da vida, cada filha conseguir ser 5% do que a senhora é, cada filha terá alcançado o mesmo destino das grandes mentes que, em algum momento, descobrirão a cura do câncer, da AIDS, do Alzheimer ou do Parkinson.
Um dia – em algum ponto desse vasto futuro – meu cartão de ponto nesta vida se preencherá. Meu embarque ocorrerá pontualmente no horário marcado. Ainda não sei meu destino, mas espero que, entre uma e outra troca de ônibus, possa encontrar a senhora e painho em alguma estação. Provavelmente ficarei em silêncio pelo impacto de vê-los novamente, mas, se naquele momento de emoção, me for concedida a consciência da palavra, tentarei reunir minhas forças para balbuciar: obrigado por tudo!
Como a senhora já frisou inúmeras vezes, quem tem sua mãe que cuide dela. Obrigado por ser minha mãe! Ontem, hoje e sempre!

terça-feira, 9 de abril de 2019

PÃO COM BACON E CALABRESA


Estou no meio da xícara de café quando um homem empoeirado entra na padaria, senta-se no outro lado do balcão, observa a prateleira de salgados. Como pão com manteiga e bebo café puro: encaixar a despesa em meu orçamento. A aflição do homem me leva a pensar em abdicar dos números e dos cafés dos dias seguintes para proporcionar-lhe um sopro de alívio naquela manhã. Chamo o atendente que, de imediato, cumprimenta o simpático cliente, já sem dentes, estendendo a mão e pedindo e café de sempre. Já que o café é de graça, digo-lhe, proporciono-lhe a comida.
- Pode ser um misto quente? Pergunta-me, sem cerimônias.
Meus olhos deslocam-se como foguetes às letras grandes do cartaz que informa os preços: o misto quente custa três vezes o meu pão com manteiga e café. Volto os olhos ao homem que, sorridente, aguarda minha resposta. Feita a confirmação, o atendente abre o pão, coloca tomate, duas fatias de queijo, duas de apresentado, maionese e mostarda.
- Também poderia colocar um pouquinho de bacon, de calabresa e um ovo?
Meus olhos denunciam o abuso do pedido, mas me controlo e autorizo a inclusão dos ingredientes que, assegura-me o funcionário, aumentará um pouco o valor final do produto. Quase sem fechar, o pão, prensado na chapa, sai fumegando segundos depois.
- Você poderia cortar em quadrados pequenos?
Pacientemente, o atendente corta o pão no tamanho de tampas de caneta, junta os pedaços num copo descartável e entrega ao insólito cliente que, apresentando uma espécie de reverência, sai sorridente pela porta da direita. Um homem sentado a dois bancos adverte-me que minha atitude nada tem de bonita; apenas estimula a malandragem, a mendicância e a violência. Engulo meu café, já frio, pago a conta, atravesso a rua e, na banca de revista, vejo o homem empoeirado sentado no chão ao lado de dois cachorros, um deles cego, velho, sujo. O dono da banca entrega-me os jornais, explicando-me que “Seu João”, morador de rua, sai de loja em loja buscando restos de comida para que o cachorro – cego, velho e sujo – não seja maltratado.
Saio pensando que um cavalheiro de tamanha nobreza poética jamais valer-se-ia de malandragem ou violência.

terça-feira, 26 de março de 2019

FILA DO INSS


- Eu não disse que daria certo?
- Realmente tenho de concordar: deu muito certo. Fiquei com medo de ele recusar a proposta. Tão cheio de regras, tão cheio de pudores e de palavras sacras, tão cheio de etiquetas, de calça bem passada e de sapato lustroso...
- Nenhum homem resiste a uma mulher como você. Todos esses anos de academia, corrida cinco vezes por semana, alimentação equilibrada... Usou aquele vestido azul curto?
- Tiro e queda!
- Não tinha como não dar certo. Bastava um jeitinho e...
- E as coisas acontecerem. Ainda comentei com minha mãe sobre a possibilidade de ele me considerar uma dessas mulheres da vida, sem vergonha, que gosta de frequentar esse tipo de lugar...
- E sua mãe?
- Ela me disse que não tinha conversa. Se ele não fosse por bem, deveria levá-lo por mal, nem que precisasse usar da força bruta e pedir ajuda...
- Meu Deus! Sua mãe entende de homem!
- Ah, se entende! Depois que aceitou Jesus, abriu mão de muita coisa, mas ela já tinha fechado a porta na cara de médico, agrônomo, professor, advogado, gerente de banco e até um bispo prometeu largar a igreja por causa dela, mas, no fim das contas, ela apaixonou-se por meu pai...
- Atendeu seu telefone!
- Alô, meu amor. Sim. Saudades. Gostei. Adorei. Amei. Quero de novo! Hoje à noite?
- Verifique se realmente o telefone desligou. Hoje à noite de novo?
- Vou comprar uma fantasia que vi naquela loja de roupa perto da fonte. Beijos.
- Sua doida! Boa sorte.
A atendente mirou o computador:
- Próximo. Aposentadoria, pensão ou auxílio-doença?
- Motel, respondi sem maiores delongas.

terça-feira, 19 de março de 2019

A QUEM, DE FATO, INTERESSA?


Outro dia, ao almoço, o poeta – e também administrador financeiro – Ozair Campos de Lacerda iniciou a explanação do projeto de viagem à Itália. Sua pretensão: visitar as cidades mais famosas, entre elas, Roma e Veneza. A conversa sobre preço de passagens aéreas, hotéis, alimentação, seguros, rotas mais baratas já ia adiantada quando sua esposa falou tranquilamente: - Vou fazer o aniversário de cinco anos de nossa filha.
Entre um e outro argumento – entre eles, o dinheiro curto – a esposa batia o pé sobre o aniversário, ele, reforçava a economia indispensável para conseguir atravessar o Atlântico, a pequena filha, sentada à ponta da mesa, perdida em algum desenho da internet, mantinha-se calada, alheia ao debate. Virei-me para ela e, com absoluta malícia, indaguei:
- Você prefere viajar com seu pai ou festar com sua mãe?
E a menina, inteligente como todas as crianças brilhantes cujo raciocínio amadurece antes mesmo de encerrarmos nossas perguntas, disparou:
- Eu quero brinquedo!
Algumas vezes focamos em projetos pessoais – extremamente importantes para que, ao fim do ciclo terreno, afirmemos que valeu a pena ter aproveitado a vida – e inúmeras outras esquecemos de ouvir se nossos filhos, pais, mães, avós, maridos, esposas, companheiros de trabalho ou conhecidos também desejam enfrentar nossa maratona. Esquecemos que, em tantas outras vezes, a companheira ou o companheiro de viagem nunca teve ambição de ler um livro, de compreender um quadro, de se irritar com uma peça, de chorar em um filme, de elevar as mãos no ar como a reger uma orquestra imaginária, de vibrar com as vitórias.
Nossos projetos de vida são nossos projetos de vida. Por isso, quando nos despedimos temporariamente para uma viagem – qualquer que seja a viagem – ao som de “até logo”, não exibimos egoísmo, mas apresentamos amadurecimento a ponto de escolher e de colocar em prática nossas prioridades.
A quem, de fato, interessa a viagem? Ao pai.
A quem, de fato, interessa a festa de cinco anos? À mãe.
À filha interessam os brinquedos. Nem viagens internacionais, nem festança.
E, a nós, o que de fato nos interessa?

terça-feira, 12 de março de 2019

COMENDO CHOCOLATE ESCONDIDO


Adorava inserir solteiro no campo destinado ao estado civil nas fichas de hotel e documentos oficiais, reiterando, entre os ciclos de amigos, de parentes e de colegas de trabalho, a escolha do eterno estilo de vida. Vida que, diga-se de passagem, tomou sentido absolutamente contrário do que desejava quando um de seus irmãos perdeu o emprego e, juntamente com a esposa, teve de tentar ilegalmente a vida nos Estados Unidos deixando sua sobrinha de seis anos em sua casa por prazo indeterminado.
Se o irmão e a cunhada tivessem indagado a respeito da possibilidade de cuidar de Camila, certamente ele teria rejeitado qualquer intenção de virar tutor, mas, conhecendo como o conheciam, preferiram deixá-la com um bilhete, usando a mãe dele como mensageira.
A sobrinha não se mostrava inteiramente uma peste. Entretanto, seus ouvidos pequenos permitiam-lhe detectar, a léguas de distância, o rompimento da embalagem de chocolate, interpelando-o com batidas na porta do carro, do banheiro, do quarto ou da cozinha. Depois de engolir três caixas em menos de uma semana, o solteiro convicto articulou estratégia militar para cuidadosamente, depois da meia-noite, quando ela já dormia, estocar suas caixas na parte de cima do guarda-roupa. Mas, antes, conversou seriamente com ela a respeito dos malefícios do açúcar no sangue, arrancando-lhe o compromisso de que ambos, dali em diante, recusariam qualquer investida contra a decisão de abstinência.
Sem problemas, sempre depois da meia-noite e meia e antes das três da manhã, abria cuidadosamente a porta superior do guarda-roupa, pegava dois chocolates, desembrulhava-os e, como o sedento perdido no deserto ao encontrar água, saboreava cada contato da língua com seu objeto de desejo. Considerava-se vitorioso quando, numa noite, depois de subir na cadeira, encerrou a melindrosa operação e arremessou dois chocolates da cama.
- Quem fez pacto de abandonar o açúcar porque ele é prejudicial à saúde?
Recuperado da queda – causada pelo desequilíbrio do susto – ele fitava incredulamente a menina, mãos na cintura, semblante irônico, inteligentemente dentro do quarto por seu esquecimento da porta aberta.

terça-feira, 5 de março de 2019

UNIDOS DA VILA OPERÁRIA: SAMBA E ARTE


Sábado à noite: minha mãe, a mãe de minha filha Isaura, Isaura e eu nos colocamos entre as ruas André Perini e Siqueira Campos, aguardando o desfile da UNIDOS DA VILA OPERÁRIA, tradicionalíssima escola de samba de Assis/SP. Passistas, intérpretes, dançarinos e bateria invadem a Avenida, arrastando a multidão até o barracão da escola onde a festa continua noite adentro.
Talvez eu pudesse destacar a animação da ala das baianas, a efervescência das passistas, o ritmo da música e a coreografia esmerada dos profissionais que abriram e fecharam o desfile. Porém, ao fim daquela noite, eu me lembrava das considerações do crítico literário Antonio Candido para quem a Literatura tem a função de colocar ordem no caos e de humanizar mulheres e homens.
Quando chegávamos ao fim da apresentação de rua, cinco senhoras de mais ou menos setenta anos de idade, uma delas apoiada na bengala e outra escorada no andador, o quinteto – segurando com todas as forças de suas alegrias os portões de ferro atrás dos quais, renunciando ao cansaço de décadas de idade, de dissabores e de limitações – aplaudia efusivamente a menina de três anos que, sem pretensões, eclipsava as lindas passistas.
Meu desejo: entrar no barracão e continuar a sambar com minha filha mais nova. Minha mãe e a mãe de minha filha protestaram: com sete meses de idade, o som da bateria prejudicaria a audição de Isaura.
Quando nos despedíamos do espetáculo de sons, avistei, à varanda de um sétimo andar, três crianças observando o barracão – à porta do qual minha filha tivera o privilégio de se envolver com a magnífica música – e sambando efusivamente. Como se, naquela solidão na qual se isolavam, espalhassem a harmonia sincera de acordes e silêncios ao resto do mundo.
Incumbidos das inúmeras responsabilidades ao sucesso da apresentação pública e gratuita, provavelmente os integrantes da UNIDOS DA VILA OPERÁRIA desconhecem que, naquele sábado de carnaval, transformaram as vidas das cinco senhoras e das três crianças: resgataram-nas do caos do cotidiano, tornando-as ainda mais humanas.
Se, como diz Antonio Candido, a Literatura tem a finalidade de humanizar, a música – e, em especial, o samba – tem a função de arquitetar sonhos (às crianças) e de reviver a esperança (aos idosos).
Epicuro ensina que a filosofia rejuvenesce os velhos e amadurece os jovens. O que conseguiu a UNIDOS DA VILA OPERÁRIA? Dar liberdade. Liberdade àquelas cinco senhoras que, apesar da idade e das restrições físicas, aplaudiam o início da vida representada pela dançarina de três anos. Liberdade ao trio de crianças, aprisionado na varanda do sétimo andar, euforicamente desejando as festividades no barracão.
UNIDOS DA VILA OPERÁRIA: grato pela festa. Continuai a derramar – e a inspirar – a liberdade!

terça-feira, 26 de fevereiro de 2019

AVENTURA DE CURITIBA


Se você gosta de revolução de costumes, não pode perder a nova linha da empresa Guerino Seiscento: ela sai de algum lugar – Penápolis? – arrastando todos os passageiros do caminho – Tupã? Quatá? Paraguaçu Paulista? – até chegar a Assis e de lá, tomando rumo por Londrina, descer até a capital dos paranaenses.
Como provavelmente nunca saíram de suas cidades e desejam ardentemente conhecer a cidade invejável das revistas, os passageiros extravasam a ansiedade por diálogos intempestivos, intermináveis e audíveis.
Você encontrará o pai com três ou quatro filhos, gritando o tempo inteiro que, em Curitiba, nadarão na piscina do Tio Conrado. Como se não bastassem os gritos, o pai também ouvirá músicas peculiares e, a cada cinco ou seis minutos, gritará seus refrãos.
Você também encontrará a mulher que, no banco traseiro, após as insistentes entoações do pai, escolherá algumas músicas religiosas e, sem desconfiômetro, bradará os hinos sem indagar aos demais se aceitam sua apresentação artística gratuita.
Você se deliciará com o pessoal que, de férias, conversará ou pelo telefone ou pelo zap com filhos, netos, mães e parentes em geral sobre as qualidades do ônibus: banheiro no piso térreo – afinal, eles estão no primeiro andar, vista panorâmica, água mineral e ar-condicionado – banco de couro, suporte para as pernas, saquinhos plásticos para o lixo e luzes no chão.
Quando você imaginar que nenhuma outra surpresa poderá ocorrer, uma mulher de Assis, seguida de outra de Penápolis, arrancará os tênis, estenderá as pernas sobre o painel e, em poucos minutos, o ônibus inteiro se inebriará com os olores de queijo francês, guardado a sete chaves por sete séculos em algum calabouço.
Obviamente a aventura renderá boas lembranças a ponto de um cronista encher as linhas de sua coluna ou a menina completar os espaços em branco da redação sobre as férias, pedida pela professora no primeiro dia de aula. Se você quiser uma aventura – viajar até Curitiba – não perca, por nada neste mundo, a linha da Guerino Seiscento que passa em Assis/SP. Mas, nunca siga nela caso precise assistir ou ministrar aulas ou prestar concursos.

terça-feira, 19 de fevereiro de 2019

OU O CARRO, OU A MÃE


Desde que virara coroinha, a mãe falava pausadamente daquele que, nove meses de gestação e dez anos de vida, transformara-se em seu orgulho. Seguia os passos de Francisco de Assis, santo dos animais e conhecido por ter abandonado o patrimônio familiar para se dedicar às causas do espírito. Transbordava de felicidade quando ele transportava os apetrechos da celebração eucarística.
O menino não precisava seguir os passos do padre, mas se aprendesse a colocar em primeiro lugar bondade, abnegação e amor ao próximo, tornar-se-ia um homem pacífico no mundo de violências. Talvez por essa razão incentivasse-o a procurar a melhor maneira de dar resposta às situações mais incomuns.
Exemplar, lavava o próprio prato, recolhia suas roupas, arrumava o quarto, organizava os cadernos e os livros, chegava vinte minutos antes da catequese e, quando indagado a respeito de trecho bíblico, erguia o braço, respondendo palavra por palavra do fragmento solicitado.
A mãe comentava com as amigas da antiga faculdade da convicção de que, acontecesse o que acontecesse, o filho jamais seguiria o erro e de sua boca nunca sairia palavra que não exalasse doçura.
A formação religiosa do primogênito encaminhava-se bem até os festejos de fim de ano quando o amigo de carro de ar-condicionado resolveu visitar a família. Entre uma conversa e outra, a ideia de tomar sorvete no Parque do Povo. O grupo dividir-se-ia em dois automóveis já que, ao total, somados o amigo, a mãe e a amiga do amigo aos dois filhos, ao marido e a ela, totalizavam sete pessoas.
Fim de tarde tranquilo se o amigo não a tivesse angustiado com a dúvida: ele preferiria a família sem ar condicionado ou um estranho com ar condicionado?
À saída, o menino hipnoticamente encaminhou-se ao carro do estranho. A mãe gritou: - Para onde você vai? Nosso carro está aqui.
- Vou no carro do tio, sintetizou o menino, sem estacar o passo.
- Você vai abandonar sua família? O que vai ser da gente sem você?
Ele parou. Virou-se. Depois de alguns segundos:
- Deus proverá – e continuou arrastando os chinelos até o carro do “tio”, estimulando o irmão mais novo a pegar o melhor lugar.

terça-feira, 5 de fevereiro de 2019

APRENDENDO INGLÊS


As oportunidades da rede mundial de computadores: sexo, exercício físico, comida, livros, viagens, móveis, remédios, hotéis, sapatos e, até mesmo, curso de idiomas. Provavelmente a hipótese da dificuldade paterna passou despercebida pelo filho quando pagou curso de inglês que prometia, em 12 parcelas de 500 reais e 48 semanas de atividade pedagógica, tornar qualquer um fluente na língua de Dickens.
O filho mexeu no mouse, ajeitou a tela do computador, ajustou o som, apontou as setas de “volta” e de “adiantamento” das lições on line, anotou, em um caderno, o telefone para conversar com especialistas sobre problemas técnicos, despediu-se do velho exigindo, nos próximos três meses, o domínio básico do idioma que o tornaria independente para visitá-lo na Irlanda.
- Calma, papai. Tenha muita calma.
Os comandos – didaticamente dispostos em fichas coloridas – pareciam simples: solucionou o primeiro, o segundo e o terceiro exercícios numa quinta-feira, retornando às lições na manhã seguinte. Ultrapassou sem dificuldades o quarto, o quinto e o sexto. Em seguida, o sétimo, o oitavo e o nono. Porém, concentrava todas as suas forças contra a imensa barreira da décima lição. Assimilara bem os indicadores do passado e do presente, mas que raio significava aquele verbo que, no presente, indicava algo realizado no passado presente que, por sua vez, diferenciava-se completamente do passado remoto, absolutamente distinto do passado cujo conteúdo manifestava incertezas?
Passou a mão no telefone. Milagrosamente a telefonista o atendeu em menos de três minutos. Depois de explicar suas dúvidas na composição sintática e semântica, ouviu a justificativa de que a função daquele número limitava-se a esclarecer problemas técnicos – páginas que não abriam, senhas bloqueadas, supressão de som, imagens incompletas...
- Como vou resolver meu problema com o idioma?
- Isso eu não sei, senhor, respondeu a atendente. Aqui, resolvo apenas problemas técnicos. Tenha um excelente dia. Fique na linha para avaliar meu atendimento.
À noite, quando o filho indagou se o inglês abria horizontes, o pai, olhando o computador partido ao meio por uma cadeirada, asseverou:
- Está abrindo muitas coisas!

terça-feira, 29 de janeiro de 2019

BOLSA DE EMERGÊNCIA


Outro dia o telefone tocou por volta das cinco e meia da manhã. Sem escovar os dentes ou tomar banho ou beber uma xícara de café ou de chá, vesti o primeiro calção que me apareceu na frente (comicamente um de futebol), uma camisa, meias e tênis, peguei o carregador e os telefones, a carteira, a chave do carro e as do escritório, meti-me no veículo e vinte minutos depois estacionava em Paraguaçu Paulista.
Despendi o dia indo ao hospital e, em seguida, pondo-me de vigília, encerrada por volta das três tarde. Entre a saída de casa e o fim do trabalho, peguei-me muitas vezes cansado de vasculhar as informações de redes sociais ou do site de notícias, refletindo sobre a necessidade de ter à disposição uma “bolsa de emergência”.
Como o nome diz, usa-se a tal bolsa em emergência. Caso o telefone dispare de madrugada – ou mesmo entre o início e o fim do horário comercial – pega-se a bolsa e segue-se ao destino. Dentro dela, o básico: dois pares de meias, cinco cuecas, uma calça social e uma jeans, um calção, duas camisas de mangas longas, duas camisetas, escova, creme dental, sabonete Phebo, anti-perspirante, fio dental, perfume. Obviamente cinco ou seis livros: três de crônicas, dois de poesia, um de contos ou de romance. Embora dedique-me à dramaturgia há seis anos, não levaria nenhum título. Motivo simples: como diria um grande professor, dramaturgia não é como romance que, ocorreu algum imprevisto, a gente para a leitura, retomando-a sem problemas dois dias ou duas semanas depois.
Talvez papéis avulsos – inteligentemente um bloco de notas – coubessem na bolsa, acompanhados sempre de duas ou três canetas. O telefone celular ajuda bastante nas anotações, mas, diferentemente das canetas e dos papéis, eles jamais vão nos deixar na mão por falta de bateria, dificuldade de encontrar uma tomada, travar ou ser invadido por vírus que nem mesmo os brilhantes técnicos de eletrônicos arrumam soluções para erradicar.
Andei pensando se poderia encaixar outros itens na bolsa, porém acredito que, por um ou dois dias, os listados acima seriam mais do que suficientes. O que você levaria em sua “bolsa de emergência”?

terça-feira, 22 de janeiro de 2019

JANTAR DOS DEUSES


Aceita prontamente o convite do amigo para jantar na casa da mãe. Conhece tanto a casa quanto a mãe desde o período em que ele e o amigo jogavam futebol na Barra Funda. Ele, centroavante; o amigo, goleiro. A primeira lembrança toma conta da imaginação: suculentos pedaços de alcatra, farofa, vinagrete, arroz carreteiro – especialidade materna – e inúmeras garrafas de Coca-Cola.
Desde a mudança do amigo para Noruega – trabalha numa organização ambiental – catorze anos atrás, limita-se a trocar algumas mensagens pelas redes sociais e pelo zap. Agora, férias de janeiro, encontra-o casualmente na banca de revistas, reconhece-o pela tatuagem de bola empacando no travessão, abraça-o, recebe o convite do jantar.
Acorda por volta das seis da manhã. Escova os dentes. Faz a barba. Toma banho e xícara de café. Come dois pães com ovo. Volta a tomar café. Lê o jornal. Anota os itens da compra de supermercado. Telefona para o veterinário. À porta do apartamento, conversa com a vizinha sobre os problemas hidráulicos. Orienta o porteiro a redobrar a segurança. Caminha pelo comércio. Sabendo do suculento jantar, restringe o almoço a três tomates: - Quanto mais espaço, mais eu como, sorri, feliz.
Graças aos programas de piadas na internet, a tarde passa rapidamente. À casa da mãe do amigo, as vistas escurecem, denunciando a fome. Relembra da velha sala, dos filmes pornográficos da adolescência, do pai do amigo tocando violão. Estranha a ausência do cheiro do churrasco. Entre uma conversa e outra, passam-se quase duas horas ao fim das quais o amigo convoca à churrasqueira.
- Espero que gostem! Um jantar para saudar a mãe natureza!
Sobre a mesa, tomates, alfaces, rúculas, pepinos, uvas, maçãs, bananas, berinjelas, morangos, laranja, manga...

terça-feira, 15 de janeiro de 2019

POR QUE CONTINUAR LENDO SCLIAR?


Escritor festejado até mesmo pelos teóricos da literatura, Italo Calvino lista os motivos que levam um título qualquer a se tornar clássico. Ressalta, entre seus mandamentos, o de que um clássico é aquele que nunca deixa de falar algo novo. Acredito que este seja o segundo motivo que me levou à paixão pelo trabalho de Scliar; o primeiro certamente é a capacidade de aprofundar-se nas temáticas por meio de seu estilo simples, fluido e hipnotizante.
Justamente por nunca deixar de nos trazer algo novo, Sonia Pascolati, Celina Gomes e eu organizamos o DE FIGURA FEMININA? – OS PERFIS DA MULHER NA OBRA DE MOACYR SCLIAR. O livro – publicado pela Editora da Universidade Estadual de Londrina (EDUEL) em 2018 – analisa as representações do feminino na obra do escritor gaúcho. Dele participam Maria da Gloria Bordini (Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS), Maria Eunice Moreira (Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul - PUCRS), Diego Luiz Miiler Fascina (Universidade Estadual de Maringá – UEM), Wilma Coqueiro (Universidade Estadual do Paraná – UNESPAR), Sandro Adriano da Silva (Universidade Estadual do Paraná – UNESPAR), Wilton Carlos Lima da Silva (Universidade Estadual Paulista Julio de Mesquita Filho – UNESP), Celina Gomes (Instituto Federal do Paraná – IFPR) e Rinaldo Brandão (Universidade Estadual da Paraíba – UEPB).
Embora as temáticas relacionadas à libertação feminina jamais tenham se tornado projeto literário – declarado ou claudicante – do escritor gaúcho, Moacyr Scliar cria personagens que, ou na condição principal ou em posição coadjuvante, captam o espírito das principais lutas emancipatórias femininas do século passado, mas presente em todos os tempos. Assim, as/os pesquisadoras/es debruçam-se sobre seis romances – “Os deuses de Raquel”, “O ciclo das águas”, “O centauro no jardim”, “Cenas da vida minúscula”, “A mulher que escreveu a bíblia” e “Manual da paixão solitária” – e um conto – “Memórias de uma anoréxica”.
Para quem gosta de (boa) literatura e deseja comprar o livro, basta clicar no link abaixo:




terça-feira, 8 de janeiro de 2019

FORA DE MODA


Percebe a mudança nos últimos tempos: Roberto Carlos mantém a posição, entretanto muda de estilo. Do topo das mais românticas assume o primeiro lugar das mais bregas. Os espetáculos de fim de ano perdem audiência. As fórmulas de apresentação, luzes, palco, figurinos, caras e bocas se repetem incansavelmente. Possível até mesmo descobrir quais músicas não faltarão ao repertório naquela noite.
Talvez por essa razão silencie sobre gostos, amores e preferências musicais durante o jantar marcado por meio de um site de relacionamentos. Desde a separação da última namorada, um ano e meio antes, tenta algum encontro. Contudo, a calvície avassaladora, o corpo apresentando as manifestações dos muitos quilos acima do ideal, os problemas financeiros – o levaram a devolver a moto e o carro financiados – e os imbróglios na Justiça por causa da pensão impedem a busca da felicidade.
Ela fala do governo, do descontrole da inflação, das correrias de amigos em busca de aposentadoria, de desemprego, da volta por cima, de como trocara a gerência de agência de banco em São Paulo pelo cargo de professora do estado numa cidade de pouco menos de dez mil habitantes e, aprovada recentemente no concurso da prefeitura de Curitiba, das dificuldades de adaptação à capital dos paranaenses, conhecida especialmente pelos contos de Dalton Trevisan, a quem dedicara dois anos e seis meses de estudos contínuos em um mestrado.
Ele – mal fala – concorda com seus posicionamentos. Vez ou outra articula mais de cinco sílabas. Antes de caírem no silêncio, ela retoma a conversa. Ele a observa: anos mais nova, vida tão agitada e tão cheia de histórias. O garçom leva a conta. Dividem: ele, dinheiro; ela, cartão de crédito; ele, balas; ela, café. Os dois, frases comuns à despedida.
Ele sugeriria esticarem a algum bar ou mesmo até sua casa. Cerveja ou vinho. Beijos, abraços, sexo. Ela aceitaria sem resistências. Despedem-se.
Já em casa, solitariamente procuram novos rostos nas redes sociais para, em breve, jantarem, conversarem, terminarem a noite ouvindo solitariamente as melhores do rei. Roberto Carlos: tão fora de moda, tão permanente.

terça-feira, 1 de janeiro de 2019

O DESAFIO DOS 2.200 TOQUES


Anos atrás Sergio Cabral, jornalista e, coincidentemente, pai do ex-governador do Rio de Janeiro, tratava dos problemas iniciais de sua carreira na imprensa: instado a ajudar no fechamento da edição, precisava de uma palavra com dezesseis letras. Nem uma a mais, nem a menos.

Dezenas de cronistas já escreveram sobre a folha em branco, a falta de ideia, a ausência de estímulo, a inspiração cambaleante ou o texto imperfeito. Depois de quase seis anos sem a crônica diária, desenvolvida inicialmente em Assis e, depois, em Presidente Prudente, enveredando pelo doutorado e afogando-me nos oceanos de processos do escritório, volto-me ao desafio de, em 2019, publicar uma crônica semanal contendo, no máximo, dois mil e duzentos toques.
Obviamente não me atreverei a, nos moldes de Cabral, escrever o número exato e perfeito de caracteres propostos no título, mas depois de pouco mais de meia década dedicando-me a escrita acadêmica – tese, artigos e resenhas científicas, relatórios – e à jurídica – pareceres e peças – cria-se a impressão da perda de capacidade de decifrar poeticamente o cotidiano.
Talvez seja essa a finalidade do cronista: escrever sobre o cotidiano, resgatando, das situações invisíveis, os sabores que os saberes nos ajudam a decifrar. Saberes e sabores são conceitos emprestados de Barthes por Rubem Alves. Segundo o brasileiro, filósofo e cronista de primeira grandeza, a vida alcança sua finalidade quando sabemos vivê-la com sabor.
O automóvel é um saber, mas tem importância quando nos traz um sabor: uma viagem às cidades históricas de Minas ou do Rio, um socorro a quem precisa de hospital, o pôr-do-sol acompanhando o longo trajeto de quem busca amor, o último passeio de quem acredita na salvação médica. Quando se tem carro apenas pela propriedade, temos um saber que nada tem de sabor. Já imaginou pagar 48 ou 60 parcelas do financiamento, seguro, IPVA, manutenção (troca de óleo e de pneus, balanceamento e alinhamento, lavagem, aplicação de cera, substituição de molas) para jamais cortar o país de uma ponta a outra?
A vida é feita de saberes. A vida é feita de sabores. Aprenderemos a saboreá-la em 2.200 toques semanais durante o ano de 2019?