sábado, 28 de novembro de 2009

TRANSPORTADORA

Quando me chamou para parceria comercial, meu amigo advertiu que a empresa eventualmente poderia apresentar resultados negativos nos primeiros meses, certamente durante um semestre. Divulgação, pedágios, conserto de avarias, horas extras, alimentação e pensões em viagens mais longas.

Desde que não tivesse prejuízo e pudesse efetuar saques mensais estava tudo perfeito para mim. A sociedade prolongou-se e nos três anos seguintes passava uma vez por mês na transportadora. Queria apenas pegar o dinheiro e ir embora, mas meu amigo insistia para que verificasse os livros contáveis, aprovasse a compra de novos caminhões, opinasse sobre os equipamentos de segurança, sugerisse modificações em trajetos, procurasse medidas legais para diminuir os impostos.

Eu prometia que me esforçaria para atender seus pedidos, fingia que os anotava num pequeno caderno que guardo na bolsa, apertava-lhe a mão e aparecia trinta ou quarenta dias depois para meu saque.

Acordei na quarta-feira aparentemente feliz porque não teria de trabalhar. Quinta-feira seria feriado, sexta-feira ponto facultativo. Faltavam-me apenas algumas centenas de reais para encher o tanque do carro, comprar alguns mantimentos e correr os quinhentos quilômetros até a praia. Se saísse de Assis por volta das dez e meia estacionaria em lugar privilegiado para o pôr-do-sol ao som de Ravel.

Se saísse...

Percebi um movimento intenso na transportadora. Admirava como meu amigo lidava com imprevistos, pressão, desencontros e cobranças. Conferia as notas de entrega, assinava cheques, copiava dados numa planilha, assinava contratos com a prefeitura, recalculava os fretes atrasados pelo rompimento de ponte e por causa da chuva.

Eu o acompanhava. Entramos no depósito, na oficina, na contabilidade, no repositório de peças. Ele na frente, ao telefone, eu atrás, mãos no bolso, esperando um intervalo para pedir meu dinheiro. De repente:

- Sabe dirigir caminhão?

Eu responderia que minha Carteira Nacional de Habilitação me permitia dirigir caminhões e ônibus. Ele emendou:

- Se sabe, sabe. Se não sabe, vai aprender agora.

Em pouco mais de cinco minutos entrava na cabine incumbido de entregar uma carga em Londrina. Sem muitas surpresas, saí de Assis meio temeroso, mas muito confiante. Talvez se apertasse o pé conseguisse voltar antes do meio-dia. Afinal, Londrina era ali. Um pulo. Entregaria a encomenda, pegaria o recibo, entregaria o recibo ao meu amigo e sócio e entraria nos limites da praia no início da noite.

Cento e dez quilômetros por hora. Precisava alcançar essa velocidade para meus planos darem certo. Assim que fiz o trevo da Unesp percebi que não conseguiria ultrapassar os noventa por hora. Na primeira subida, o caminhão diminuiu para menos de sessenta.

Observando os caminhoneiros, notei que aceleravam na descida para obter alguma vantagem na subida. Fui tomando gosto pela coisa, pegando as manhas, sentindo-me integrado ao grupo de profissionais. Aos poucos, as marchas encaixavam tranquilamente, os freios correspondiam à sensibilidade de meus toques, o veículo deslizava nas curvas.

A paisagem entrecortada por dois rios e tonalidades de verde despertou-me lembranças nem tão distantes. Recordava quando meu pai nos jogava no banco traseiro do carro – meu irmão, minhas duas avós e eu – e assumia a direção tendo, ao lado, minha mãe e meu irmão mais novo. Vez por outra nosso cachorro nos acompanhava à praia. Naquele tempo, preferia ficar em casa, dormindo. Praticamente os dias de sábado e de domingo na praia significavam sono. Sono profundo. Detestava praia. Depois de velho, os silabares marítimos despertavam-me alguma nostalgia. Nostalgia do que poderia ter sido. Cada nova paisagem me levava ao carro de nossa família, deslocando-se entre coqueiros. A lembrança tornou-se ainda mais forte quando uma rádio de Londrina entoou uma música de Roberto Carlos.

Minha viagem à praia seria ótima, pensava, olhando no retrovisor para mudar de faixa. Seria ótima se, aproveitando o embalo da descida para manter a velocidade na subida, não tivesse passado a noventa por hora nas duas lombadas de Sertanópolis. Eu sabia das lombadas, porém, extasiado com a aventura de caminhoneiro, esqueci-me delas.

Achei facilmente o endereço da Avenida Maringá, buzinei feliz, desci sorridente quando, quase esfregando as mãos e fazendo propaganda da qualidade e da rapidez da transportadora, o gerente da loja de material de construções se disse ansioso para ver os novos modelos de espelhos, pias e vasos sanitários.

*Publicado originalmente no Jornal de Assis (Assis – SP) de 28 de novembro de 2009.

sexta-feira, 27 de novembro de 2009

O ROMANCE EM CONSTRUÇÃO

Engana-se quem pensa que a qualidade de um livro se relaciona diretamente ao tamanho ou à fama de um editora, à rede de distribuição ou aos milhões de exemplares vendidos. A qualidade de uma obra se liga ao desempenho do escritor na condução e composição dos elementos de criação e de análise literárias (enredo, personagem, tempo, espaço, narrador, linguagem).

Tanto é assim que grandes nomes – entre eles, Dalton Trevisan, Autran Dourado, Moacyr Scliar e Cristovão Tezza – iniciaram suas carreiras literárias patrocinando seus lançamentos e assumindo os óbvios riscos do mercado e da crítica.

Alguns escritores conseguiram entrar no catálogo de grandes, médias e pequenas editoras, porém outros optaram pela aventura indescritível de patrocinarem seus lançamentos, exercendo um duplo ofício de criador artístico e de empresário de um ramo com grandes dificuldades. Esse é o caso do escritor santa-ritense Reginaldo Antônio de Oliveira que, com uma obra voltada ao ensaio, ao relato autobiográfico e aos romances, tem se apresentado e se consolidado como um grande das letras do estado de José Lins do Rego, Augusto dos Anjos e Celso Furtado.

Seguindo uma linha que transforma o romance numa espécie de fábula moral, Reginaldo Antônio de Oliveira busca na discussão entre ética, moral e bons costumes o combustível necessário para levar adiante as digressões e devaneios das relações humanas conturbadas que, na prática, constituem exemplo de fato social.

Em “A vida escandalosa de Ruth”, o foco narrativo se desloca ao narrador onisciente que segue o trajeto, os pensamentos e as ações dos personagens da trama, iniciada no conturbado nascimento da protagonista. A vida difícil da menina a leva a se prostituir, aos amantes, aos prazeres sexuais e financeiros, a tentar retomar à normalidade cotidiana e, em seguida, a ser aclamada grande dama da sociedade.

Ruth tem um destino traçado para se comportar como uma mulher mediana: casar, ter filhos, levar umas pancadas do marido e se submeter aos ditames do estigma e do machismo. Entretanto, rebelando-se contra as amarras da escravidão psicológica, observa o sexo como instrumento necessário para a ascensão e manutenção de status social.

O narrador então discorre sobre os tempos em que ela se dedicava ao bordel instalado num dos pontos mais visitados da Paraíba, seguindo linearmente o abandono do local para se dedicar ao marido e posteriormente o retorno estupendo à mesma profissão. Badalada, clientes de outras cidades e homens ricos de outros estados procuram-na pela fama que se estabeleceu na região.

Depois de novamente sair do bordel e de estabelecer uma vida regrada com um proprietário de terras – geralmente alcunhado coronel no âmbito rural – Ruth presencia o declínio financeiro da família constituída e se perde em suplícios e humilhações.

Valendo-se de uma linguagem pouco trabalhada, em minha concepção um defeito grave, os clichês presentes em todo o texto empobrecem sua força semântica que poderia desencadear reflexões reais sobre a vida das mulheres em grupos machistas em pleno século XXI. Se, por um lado, a linguagem é um problema que necessitaria de solução nos trabalhos vindouros, por outro, a denúncia social e a construção da fábula moderna sobressaem maduramente.

A prostituição aparece como patologia que precisa ser vencida e as mulheres que a praticam são, segundo a percepção do narrador (não confundir narrador com autor), uma excrescência urbana. Pensar dessa maneira desfaz os anseios de igualdade entre gêneros e da liberdade, características gritantes da sociedade contemporânea ocidental. Contudo, utilizar o enredo como denúncia dos abusos sofridos pelas meretrizes, profissionais indispensáveis desde sempre, representa o exame atencioso das condições femininas e da segurança no exercício de suas escolhas.

Além dessa observação, uma leitura diferente também pode se estabelecer como fabulação, mais ou menos determinando, em grande extensão, uma moral ao fim da história, evidenciada por clichês como “o crime não compensa”, “dizes com quem andas e te direi quem és” ou adágios que exaltem as virtudes superficiais ditadas pelas convenções dos grupos dominantes.

Apesar dos problemas enumerados (principalmente o da linguagem aparentemente pouco esmerilada), o trabalho de Reginaldo Antônio de Oliveira merece destaque pela sensibilidade descritiva ricamente cultivada no desenho das mazelas, das escolhas e das eventuais punições do destino sobre os que escolhem caminhos adversos dos trâmites considerados morais.

*Publicado originalmente na Série Especial Dez Escritores Contemporâneos do Oeste Notícias (Presidente Prudente – SP) de 27 de novembro de 2009.

Vicentônio Regis do Nascimento Silva (www.vicentonio.blogspot.com) é tradutor e crítico literário.

sábado, 21 de novembro de 2009

JOSUÉ MONTELLO: SÍNTESE DO ROMANCE

Um escritor não se imortaliza pela atividade irrestrita ou pela produção maciça e cosmopolita, mas por algumas peculiaridades manifestadas no decorrer do ofício e consolidadas aos poucos, no exercício pleno da criação artística. A consolidação de estilo maduro – de trânsito fácil que vai do romance à memorialística, passando pelo jornalismo, pela crítica e pelo ensaio – faz de Josué Montello um paradigma para quem deseja um romance de fôlego.

Embora desconhecido do grande público, Montello integra o seleto grupo que, nas palavras do crítico literário Wilson Martins, possui qualidade, mas que ainda não foi lido e analisado adequadamente.

Elegemos “Cais da Sagração” para esmiuçar um pouco do universo desse imortal da Academia Brasileira de Letras, considerado por muitos o ensaísta definitivo da obra de Machado de Assis, que faz do Maranhão o cenário de algumas de suas obras.

“Cais de Sagração” se passa entre São Luis e – predominantemente – uma cidade litorânea de onde os personagens saem apenas por transportes marítimos. O miolo da narrativa se expande pela linearidade sulcada com grandes lapsos psicológicos de memória, esquecimento e redimensionamento do passado. Além disso, a linguagem serena, amadurecida e firme se quebra salutarmente por intervalos cômicos profundos.

Proprietário de um barco que se movimenta graças à ajuda do vento e aparentemente arredio às novidades mecânicas que poderiam proporcionar mais segurança, mais conforto e mais rapidez às viagens empreendidas, Mestre Severino encarna – numa mistura de sobriedade, de apegos a princípios e de autoritarismo pinçado pelo silêncio – o homem irredutível e machista. As conversas mais complicadas com a família ou com alguns amigos se exteriorizam por monólogos protagonizados pelo comandante do “Bonança” que, por muitos anos, se manteve atado ao trapiche.

O descaso em relação ao barco coincide com o período de prisão. Morando com Lourença, mulher sem grandes atrativos, simplória, acabrunhada e matuta, Mestre Severino adquire a liberdade da meretriz Vanju, que vive em São Luis. De volta da capital, informa a Lourença que se casará na semana seguinte. Lourença naturalmente se enche de felicidade, desconserta-se pela pressa do comandante, pensa em voz alta nos detalhes do vestido de noiva providenciado com uma amiga e, antes de se perder em devaneios, é alertada sobre a outra.

O aviso do enlace matrimonial parece conformar a companheira que, retirando seus pertences do quarto comum, muda para o cômodo contíguo. A aceitação do casamento, por parte de Lourença, e o deslumbramento de Mestre Severino pela meretriz Vanju simbolizam o quadro da condição feminina.

A verossimilhança e a universalidade da cena são rematadas por um discurso do narrador onisciente. Numa situação de beleza e repugnância, Mestre Severino atinge o clímax do machismo ao pensar que nenhum homem poderia se interessar por outra mulher depois de dormir com Vanju.

A vida monótona e sem glamour desencadearia a inquietação numa mulher, outrora festejada e adorada, que perdia os dias folheando revistas velhas e jogando conversa fora com Lourença, convertida em empregada doméstica.

O poder de sedução de Vanju desperta a cobiça dos transeuntes e os ciúmes doentios de Mestre Severino. Desconfiado de suas inclinações e das eventuais trocas de olhares com o promotor que chegara ao povoado, o comandante leva a esposa para uma praia afastada, afoga-a, assume o crime, se entrega à polícia, é processado e condenado e, mesmo na cadeia, passa os dias recomendando a Lourença que providencie uma lápide suntuosa para o túmulo da mulher e que cuide da filha dele.

Um momento de comicidade se dá quando, rememorando os tempos de cadeia, Mestre Severino é comunicado do falecimento do promotor. Quase enlouquecido, convence o carcereiro a abandonar temporariamente suas funções e a buscar o padre. O fracasso do carcereiro angustia Mestre Severino que se debate, mas vencido pelo cansaço, compartilha suas aflições com o clérigo no dia seguinte: a infidelidade de Vanju com o promotor se concretizaria no além.

A filha de Mestre Severino cresce, casa-se com um homem de mar e, antes de o filho se desenvolver, falece. Lourença criará o neto de Mestre Severino que, já fora da cadeia, debilitado pela idade e por problemas cardíacos, resiste aos medicamentos e à escolha religiosa do menino.

A vitória de Mestre Severino – machista autoritário – se concretiza na volta de São Luis: ao acordar depois de intensas dores no peito, testemunha o neto guiando o barco.

O problema da trama fica por conta da linguagem que, se por um lado comprova a capacidade no manuseio do léxico, por outro, enfrenta desatinos na fala de personagens, dando-lhes cultura impertinente.

Apenas pela maturidade da linguagem, pela denúncia social, pela caracterização completa da universalidade e da verossimilhança, “Cais da Sagração” deve ser lido o quanto antes. Uma obra-prima da Literatura contemporânea!

*Publicado originalmente na Série Especial Dez Escritores Contemporâneos do Oeste Notícias (Presidente Prudente – SP) de 20 de novembro de 2009.

sexta-feira, 20 de novembro de 2009

PRODUTOS ERÓTICOS

Treze anos de casamento: monotonia, rotina, cansaço, falta de criatividade. A esposa reclamava da atuação noturna.

- Ou achas uma maneira de mudarmos, ou acabo tudo. Ouviste? Acabo tudo! Tudo!

Confidenciando o problema aos amigos do futebol noturno de quarta-feira, ouviu uma sugestão pragmática: produtos eróticos.

Procurasse algumas sugestões em páginas de internet: algemas, orelhas de coelho, focinhos de porco, lingeries esgarçadas, chicotes, botas pretas de cano alto, camisolas curtas e transparentes.

- O que você quiser – e também o que não quiser – você encontra. Pode confiar.

Esperou a esposa deitar-se, os filhos dormirem e os vizinhos da esquerda e da direita apagarem as luzes na esperança de se sentir sozinho durante a prática de atividade reprovada, mas altamente instigante, deslumbrante, excitante.

Um amigo mais afoito passou-lhe três endereços eletrônicos nos quais poderia adquirir produtos de excelente qualidade facilitados em cinco vezes no cartão de crédito.

- No cartão de crédito? E se alguém pegar?

- Na fatura do cartão os gastos vêm descritos como lanchonete, restaurante ou farmácia. Qualquer um gasta num lugar desses e depois nem sem lembra.

Milhares de ofertas fizeram-no se deter mais tempo do que esperava de modo que o relógio o amedrontou às seis e vinte. Desligou o computador correndo, entrou no banheiro e quando sentou-se no vaso sanitário sentiu o alívio de a esposa bater na porta pedindo que se apressasse. Escorregou a tampa do vaso, tirou a roupa e saiu sorridente.

Depois do almoço, juntou quatro cadeiras no meio da sala de reuniões, improvisou um travesseiro com grossa e velha lista telefônica escondida atrás de um vaso para segurar a porta sempre que necessário.

A secretária o acordou minutos antes de um grupo de colaboradores de uma filial entrar pelo corredor lateral e se apossar do ambiente espalhando olores femininos. Os olores trespassaram as frestas das janelas, percorreram o corredor central e invadiram sua sala instigando o interesse noturno.

Chegou mais ou menos seis e meia, tomou banho, comeu qualquer coisa e se jogou na cama acordando às onze e quinze quando a mulher, filhos colocados na cama, vestia a camisa velha e a bermudinha com furo no lado direito. Disse para ela que precisava concluir um relatório.

Voltou a uma das páginas da internet, encantou-se com um chicote que parecia maior do que ele, um par de algemas de prata e um lingerie preto de chocolate.

Cinco dias depois a recepcionista entregava-lhe um pacote lacrado com papel madeira e um aviso de recebimento. Olhou curiosamente as letras do seu nome e o endereço do escritório. O amigo entrou na sala quando contemplava o embrulho.

- Boa sorte, disse ao cruzar com ele.

Os amigos o rodearam assim que chegou ao futebol noturno de quarta-feira. Cara triste, jeito discreto, cabisbaixo. Indagado sobre a noite, voltou a carro e mostrou os produtos eróticos que mudariam seu casamento: o chicote tinha menos de quinze centímetros, as algemas mal davam para prender os punhos da boneca da filha e o lingerie preto de chocolate derretera com o calor e os solavancos da viagem.

*Publicado originalmente no Jornal de Assis (Assis – SP) de 19 de novembro de 2009.

quarta-feira, 18 de novembro de 2009

GRACILIANO RAMOS: ARIDEZ TRUNCADA

Alguns professores de Literatura, de redação ou de oficinas literárias indicam Graciliano Ramos como paradigma de escrita concisa e fluente. Os alunos mais ávidos em pertencerem aos célebres grupos de bons escritores lêem a obra completa procurando elementos de densidade psicológica, de coesão, de coerência, de pontualidade e escassez de palavras para, de algum modo, ensaiá-los em seus próprios textos.

Geralmente festejado por “Vidas Secas” e, em seguida, por “São Bernardo”, o romancista possui uma bibliografia rica e diversificada que passeia pela literatura infantil e pelas memórias. Diferentemente do contista Dalton Trevisan, canonizado pela concisão, pelo uso morigerado de palavras, pela alta carga poética e pelo estilo maduro e quase imutável, Graciliano Ramos cria narradores consistentes.

Embora as comparações entre “Vidas Secas” e “São Bernardo” se espalhem exaustivamente em algumas leituras, a linguagem empregada no primeiro destoa do segundo pela maneira – que além de concisa é – seca, direta, objetiva e estupidamente natural. Enquanto a vida de Fabiano e a da família são esmiuçadas nos limites do sofrimento da sobrevivência, as ações de Paulo Honório desenrolam-se em um caso de amor que, repleto de peculiaridades e controvérsias, segue o modelo comumente utilizado nos grandes romances recorrendo-se aos entreveros psicológicos que tanto engrandecem “São Bernardo”.

Pela leitura desses dois trabalhos, solicitados em alguns exames vestibulares, estabelecem-se diferenças na linguagem fluida e apurada. Essa mesma linguagem já não pode ser encontrada em “Infância”.

A seca, aturdida e intragável composição sintática de “Infância” contrastam com o enredo focado em um protagonista aparentemente simplório que não enfrenta nem problemas insolúveis nem grandes questionamentos intelectuais, espirituais ou existenciais. Os leitores (experientes ou profissionais, na acepção que lhes emprega o crítico literário Wilson Martins) perceberão na linguagem truncada um importante elemento constitutivo da narrativa na medida em que grandes empecilhos se manifestam não mais para o personagem-menino que vivencia o comércio do pai, as conversas dos clientes, as experiências ou devaneios amorosos, mas para o narrador que rememora e reescreve dolorosamente sua imagem e suas impressões juvenis.

Décadas antes, Simões Lopes Neto valera-se de um narrador-personagem densamente caracterizado pelo vocabulário do interior gaúcho assim como, posteriormente, Osman Lins apresentaria sua maestria na concepção de trama indiscutivelmente angustiante, decorrência do rechaço e da regurgitação de sentimentos díspares e incongruentes.

A grandiosidade de Graciliano Ramos é evidente, porém se modela um equívoco ao tentar uniformizar sua linguagem como unidade de obra. Machado de Assis – segundo Antônio Candido, o maior escritor brasileiro de todos os tempos – geralmente se destaca pelo estilo maduro e singular que atingiu, contudo não se pode deixar de observar que idêntica linguagem aplicada ao romance e à crônica realça as qualidades do primeiro e cansa a leitura da segunda.

Daí que a fluência do velho Graça se manifesta na profundidade de uma mensagem baseada numa linguagem aparentemente simples, superficial, coloquial.

A maneira com que o narrador repassa suas impressões e emite suas opiniões desencadeia uma série de efeitos que facilitarão ou prejudicarão a recepção de um ou outro livro o que, na prática, pode demonstrar que, em questão de crítica e de público, “Vidas Secas” e “São Bernardo” ainda parecem as obras mais elogiadas do escritor alagoano que, segundo consta, imprimia uma vertente literária da linguagem mesmo quando redigia suas centenas de trabalhados burocráticos no serviço público.

Um dos nomes mais lembrados do regionalismo pós-semana de arte moderna, Graciliano Ramos desfila no mesmo patamar de grandes figuras do porte de José Lins do Rego, Raquel de Queirós ou Jorge Amado, entretanto supera a todos ao concentrar suas atenções na composição sintática, provavelmente esperando que os efeitos esboçados se manifestem não apenas pelo sofrimento econômico, social, político, econômico e religioso descrito, mas principalmente pela força da linguagem – despida de adjetivos em alguns casos – na concepção imagética e no natural desenlace orgânico repulsivo do leitor.

*Publicado originalmente no Oeste Notícias (Presidente Prudente – SP) de 13 de novembro de 2009.

Vicentônio Regis do Nascimento Silva (www.vicentonio.blogspot.com) é tradutor e crítico literário.

DANÇA DE SALÃO

Quando se casaram, o marido sabia que perderia a liberdade. Sempre que escolhesse uma camisa, uma cor fora dos padrões ou observasse algum quadro de publicidade seria cutucado: - Por que essa camisa horrível? Que cor mais “cheguei”! Por acaso você parou para olhar algum rabo de saia?

Saía das encrencas do jeito que podia. Sorria amarelo, desconversava, fingia não ouvir, inventava uma explicação epistemologicamente aceitável para qualquer pessoa que desconhecesse o significado de epistemologia.

Desde o noivado, abandonara o futebol de quinta-feira, esquecera o teatro de sexta-feira, riscara da agenda as churrascarias e as danceterias do sábado, as pescas do domingo.

- Mas nem pescar eu posso? Perguntava furioso.

- Pescar? Que conversa de pescar é essa? Já viu peixe nesse rio? Nem peixe, nem caranguejo, nem jacaré, nem sereia, nem piranha. Fique em casa. Você ganha mais.

Com o tempo, alguns desejos reprimidos foram esquecidos, outros ascendiam aos devaneios, mas rapidamente se descartavam. Um, apenas um, parecia consumi-lo: a dança.

As meninas dançando na escola, os espetáculos musicais da igreja, os filmes invariavelmente assistidos na madrugada ou alugados convidavam-no a sapatear, valsar, forrozar, tangar. À noite, ensaiava alguns passos dentro do banheiro enquanto a mulher ressonava simetricamente. Se pelo menos ela topasse uma aula semanal ou quinzenal... O que custava dançar um pouco?

- Não, não tem dança. Que conversa de dança é essa? Ele nem precisava perguntar. A resposta refluía em sua cabeça.

Passando no cruzamento da Avenida Colombo com a Morangueira, viu uma menina de saias esdrúxulas segurando um cartaz colorido: “Dança de salão. Preços acessíveis. Aulas noturnas. Telefone”. Antes que o verde gradual acendesse, tomou caneta e anotou o telefone da escola de dança nas costas do talão de cheque.

No trabalho, discou. Mão tremendo. Disfarçou a voz, interessou-se pelos horários, preços e formas de pagamento. Como se descobrisse seus devaneios, a telefonista informou da disponibilidade de dançarinas para alunos singulares. Jamais alunos sozinhos, mas alunos singulares, a diretora experiente sussurraria.

Anotou no talão de cheques: aula às vinte horas da terça-feira. Uma desculpa qualquer para a mulher. Entre quinta e terça-feira, angustiou-se. O tempo... O tempo...

Na terça-feira, depois do trabalho, tomou banho, vestiu roupa velha e remendada, jantou, sentou-se no sofá. Quando a mulher entrou no banheiro, disparou:

- Vou abastecer o carro! Melhor abastecer agora do que amanhã, em cima da hora.

Pegou a carteira, as chaves e partiu. Cinco quadras adiante parou, tirou uma sacola do porta-malas dentro da qual camisa, calça, meias e sapatos novos colidiam.

Pediu desculpas pelo atraso, teve sorte de pegar uma dançarina simpática. Preparava-se para enlaçá-la e iniciar os passos quando, percebendo rumores fortes e o distanciamento abrupto dos outros alunos, vislumbrou uma sombra:

- Como você vai abastecer o carro sem cheque, Ezequiel?

*Publicado originalmente no Jornal de Assis (Assis – SP) de 12 de novembro de 2009.

sexta-feira, 6 de novembro de 2009

Assis Brasil: entre Literatura e História

A voz calma, o semblante tranquilo e o discurso didático escondem a intensidade da força criativa de Luiz Antônio de Assis Brasil, uma pancada de livros editados, de artigos publicados, de cursos ministrados, coordenador da oficina literária da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS).

Iniciada em meados de 1970, sua carreira literária pode ser dividida em dois períodos, sendo o primeiro compreendido entre a estréia – “Um quarto de légua em quadro” (1976) – e “Concerto Campestre” (1997). Com este livro, encerra uma tradição de frases longas, parágrafos intermináveis e capítulos compridos, provavelmente inspirada em Eça de Queirós, de quem é admirador confesso.

A publicação de “O pintor de retratos” (2001), “A margem imóvel do rio” (2003) e “Música perdida” (2006) refletem as tentativas de economia frasal, de essencialidade e de pontualidade, características da nova fase.

Tomando emprestado seu raciocínio, o bom texto seria aquele do qual “se tiramos uma palavra, a frase fica sem sentido. Se excluímos uma frase, o parágrafo perde a razão de existir. Se eliminamos um parágrafo, o capítulo se desestrutura. E, finalmente, se extraímos um capítulo, o romance se lança no ininteligível”.

Em “Concerto Campestre”, acontecem conflitos violentos entre passado e presente, rural e urbano, antigo e moderno, barbárie e civilização. Tendo o Rio Grande do Sul como ambiente predominante em suas obras, o enredo se passa numa estância cujo proprietário cria um conjunto musical denominado Lira Santa Cecília, abrigando maestro e músicos em sua propriedade rural.

O fio central da trama se concentra nas relações amorosas do maestro com Clara Vitória, filha do estancieiro. Gravidez descoberta, a Lira se dissolve e Clara Vitória é isolada numa casa no pântano. Serenados os ânimos, as tentativas de reconstrução do passado se dão pela convocação dos antigos músicos para recomposição da Lira. Apesar de retomadas, as atividades e as apresentações caem no esquecimento e se isolam socialmente. O ápice do isolamento manifesta-se quando, ensandecido, o fazendeiro arrasta escravas para danças patológicas.

Numa análise da alegoria, a morte do coronel e a iniciativa (mesmo tardia) do maestro de resgatar Clara Vitória do pântano representam o rompimento entre o arcaico e o moderno, marcado pela sobreposição da civilização (música, instrumentos musicais, organização hierárquica, aquiescência, reconsideração e reparação da transgressão da conduta) sobre a barbárie (sentida no ambiente do campo, na figura autoritária e machista do patriarca, respeitada e obedecida por todos). A imagem da vitória feminina sobre o machismo e a distensão do preconceito racial simbolizam a ascensão do diálogo.

“O pintor de retratos” narra as aventuras de Sandro Lanari, pintor imigrante em busca de fama que resiste à modernidade representada pela fotografia. A insistência em praticar uma atividade que perde prestígio e a recusa em aceitar uma nova profissão de captura de imagens compõem o jogo dialético no espírito de Lanari para quem a arte se restringiria à pintura. De prestigiado pintor passa a requisitado fotógrafo nos tempos de guerra.

Provavelmente a parte mais lancinante se concentre na descrição da carnificina da loucura bélica. Obrigado a fotografar a degola de um prisioneiro, o conflito entre o moderno (fotografia) e o arcaico (pintura) se transfere ao questionamento da intolerância, da compaixão e do altruísmo.

A elegância do fragmento de “O pintor de retratos”, abaixo reproduzido, alça o romancista gaúcho ao patamar de escritores de estilo marcante, fluido e límpido na medida em que imortaliza uma cena de sutil e singular intensidade dramática:


“Traziam mais um para ser morto. Era um homem forte, apolíneo. Seus músculos rasgavam as costuras. Mandaram que se abaixasse. Como relutasse, sujeitaram-no, colocando-o de joelhos.
Latorre se preparava.
- Não! – Sandro destapou-se, levantou o braço, gritou. – Não!
Latorre suspendeu o movimento. Hirto de terror, o prisioneiro fixava a câmara.
Deu-se uma aberta de sol. Sandro tirou o obturador, fechou-o. E num único gesto, Adão Latorre degolou o prisioneiro.
A última imagem, aquela que o desgraçado levaria para a eternidade dos séculos, foi a de Sandro Lanari, o braço erguido, na atitude de quem deseja impedir algo”.


A linguagem escorreita de Assis Brasil não apenas rende homenagens à Literatura, preocupando-se com seus elementos peculiares, mas também conversa com a música, a história, a filosofia, as ciências políticas, a sociologia, a psicologia, fazendo com que sua obra se transforme igualmente em poderoso instrumento pedagógico de incentivo à intertextualidade ou, como pretendem alguns estudiosos, à multidisciplinaridade. Assis Brasil? Leitura imprescindível!


*Publicado originalmente na Série Especial Dez Escritores Contemporâneos do Oeste Notícias (Presidente Prudente – SP) de 6 de novembro de 2009.

quinta-feira, 5 de novembro de 2009

PEDAGOGIA DO ESPANCAMENTO

Quando concluiu o ensino médio, pediu ao pai um quadro-negro e, quatro meses alfabetizando crianças pela manhã e adultos à noite, percebeu que realmente tinha vocação para a docência de modo que se encerrava no quarto durante as tardes, os fins de semana e os feriados para memorizar as fórmulas de química, de física e de matemática, os conceitos de história, de geografia e de Literatura, as complexidades de filosofia e de sociologia, a inutilidade da biologia e dos movimentos políticos contemporâneos.

Embora o primeiro lugar na classificação geral tenha ficado distante de seus objetivos e de suas possibilidades cognitivas, concluiu o curso de pedagogia e o mestrado em educação com êxito sendo contratada por uma escola de classe média.

Ao fim da primeira semana de trabalho (sorrisos, cumprimentos, anedotas, café com bolachinhas salgadas, mães se apresentando e exaltando as qualidades dos filhos), o diretor chamou-a à sala onde já estavam uma coordenadora, um consultor de negócios e o proprietário da escola. Fechou a porta à chave.

O diretor pensou em abrir a janela. Porém, o dono da escola o desautorizou. Um assunto importante não poderia correr o risco de sair pelos ares, atravessar os muros e pousar nos ouvidos da concorrência.

- Quando a procuramos, os decanos da faculdade de educação nos garantiram que a senhora possuía requisitos e qualificações mais do que necessárias.

O dono ajeitou-se na cadeira, afrouxou a gravata, desabotoou o colarinho e manteve a posição das pernas. O diretor continuou:

- Sem rodeios: trabalhamos no vermelho há três anos e meio. Ou mudamos nosso método, ou fechamos as portas. Já enviamos professores para cursos de pós-graduação, ampliamos o estacionamento e a piscina, reformamos a quadra de esportes, colocamos condicionadores de ar em todas as salas e também nos banheiros, distribuímos bolsas de estudos anuais para os melhores alunos... Enfim, fizemos o possível. Não tem mais jeito. A senhora é nossa única chance.

O diretor detalhou os problemas financeiros graves.

- Se resolver um problema, um único problema, estará de bom tamanho, assegurou o diretor. Os demais aquiesceram.

Apontou com o polegar para a direita:

- Aquele problema.

A escola ao lado levara quase sessenta por cento dos discentes. Passou meses revirando livros, visitando teorias, lendo relatos de casos. Conversou com professores da faculdade que, sem saber o que fazer, encorajavam-na a continuar estudando para encontrar uma solução.

Vislumbrava a carta de demissão do primeiro emprego que mal durara um ano. Quando se preparava para anunciar o fracasso ao diretor, o silêncio incômodo da escola vizinha despertou-lhe atenção. A qualquer hora do dia jamais ouvia ninguém pulando, gritando ou berrando. Como aconteciam as aulas de educação física?

Pulou o muro dos fundos da escola adversária e na primeira sala descobriu o segredo da eficiência.

Semana seguinte, o diretor a convidou para uma reunião na sala em que já a esperavam a coordenadora, o consultor financeiro e o dono da escola.

- Então, professora? Conseguiu resolver nosso problema? Perguntou apreensivo o diretor.

- Certamente. Descobri que os pais não querem apenas uma escola tradicional com práticas educativas modernas. Querem educação eficaz, imediata e satisfatória. Para alcançarmos essa educação, seguiremos as sugestões desse pequeno prospecto que escrevi.

- E de que trata esse prospecto? Curioso, o consultor.

- De um método infalível: Pedagogia do Espancamento.

*Publicado originalmente no Jornal de Assis (Assis – SP) de 5 de novembro de 2009.